Táticas golpistas: de Trump a Bolsonaro

Agência Pública mapeia 15 estratégias do “manual” trumpista imitadas no Brasil para contestar as eleições.

A tensão pós-eleitoral no Brasil não tem nada de espontânea. E nem de original. Ela apenas completa uma estratégia empregada desde a vitória de Bolsonaro em 2018 – que, por sua vez, imita a tática adotada pelo ex-presidente Donald Trump nos Estados Unidos. 

A Agência Pública analisou algumas das principais ações do presidente americano após sua derrota eleitoral em 2020 e as comparou com os movimentos de Jair Bolsonaro e seu entorno. Esse “manual” não é replicado no Brasil por acaso. A família Bolsonaro investe há tempos em alianças nos Estados Unidos. Eduardo Bolsonaro aproximou-se do ideólogo da ultradireita Steve Bannon ainda em 2018 e desde então reuniu-se com os principais apoiadores de Trump 77 vezes.

Em 10 de novembro, logo após a vitória de Lula, Eduardo Bolsonaro viajou para os Estados Unidos, onde se encontrou com Donald Trump e almoçou com Jason Miller, CEO da rede social Gettr, que esteve duas vezes no Brasil em 2022 em eventos de apoio à reeleição de Bolsonaro. Steve Bannon inventou o termo Brazilian Spring para tentar dar um caráter democrático às manifestações golpistas no Brasil

A seguir, um resumo das principais táticas do golpismo nos Estados Unidos e sua imitação no Brasil.

1. Plantando a semente da dúvida

Depois de eleitos, ambos os presidentes passaram a dizer que houve fraude eleitoral que os prejudicou, semeando suspeitas sobre o sistema eleitoral já no começo do mandato.  

Apenas dias depois da sua vitória, Trump disse que teria vencido também no voto popular “se você descontar as milhões de pessoas que votaram ilegalmente”. Repetiu essa mentira diversas vezes. A cada nova declaração, a imprensa repercutia e as redes trumpistas reverberavam a mentira, sedimentando a narrativa. 

Bolsonaro fez exatamente a mesma coisa. Um ano depois de tomar posse, afirmou “ter provas” de que teria ganhado no primeiro turno em 2018 se não tivesse havido fraude. Repetiu a mentira diversas vezes em suas lives semanais.

2. Disseminando mentiras com uso de respaldos institucionais    

Em maio de 2017, Donald Trump usou sua acusação infundada sobre votos ilegais para instituir uma comissão presidencial sobre integridade eleitoral. Sem encontrar nenhuma prova, a comissão foi extinta em agosto do ano seguinte.  

Bolsonaro fez o mesmo em diferentes frentes, e de maneira até mais bem-sucedida que Trump. Começou em 2019 no GSI, tendo os generais Augusto Heleno e Luiz Eduardo Ramos como cabeças. A ofensiva contra o sistema de votação foi assumida pelo Ministério da Defesa após a demissão do general Fernando Azevedo por Bolsonaro, quando os comandantes das Forças Armadas também deixaram os cargos em protesto. O novo ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira, aproveitou um convite feito pelo TSE para participar da Comissão de Transparência das Eleições para criar fatos políticos, repetindo questionamentos sobre a segurança das urnas. Além de um relatório que ao mesmo tempo diz não ser possível comprovar fraude mas “não exclui a possibilidade de fraudes ou inconsistências”, o Ministério da Defesa colocou soldados para fazerem uma “auditoria paralela” das urnas em algumas zonas eleitorais.  O governo também acionou a estrutura do Itamaraty e da Secretaria Geral da Presidência para realizar uma reunião com embaixadores de países estrangeiros em que apresentou as mesmas alegações já desmentidas. O encontro foi transmitido pela TV Brasil.

3. Impulsionando a dúvida sobre o sistema eleitoral através de congressistas aliados

Em 2018, os líderes republicanos da Câmara nos Estados Unidos, Paul Ryan e Kevin McCarthy, apontaram quatro disputas na Califórnia nas quais os republicanos lideraram na contagem antecipada de votos, mas perderam quando as cédulas atrasadas chegaram. Usaram a tribuna para sugerir que teria havido fraude eleitoral.

No Brasil, Bolsonaro valeu-se de sua escudeira na Câmara dos Deputados, Bia Kicis, autora de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que obrigaria a impressão de votos para permitir recontagem.

4. Fake news e memes sobre a segurança nas eleições

Pouco antes das eleições, tanto trumpistas quanto bolsonaristas criaram conteúdos para redes sociais alegando que havia suspeitas de fraudes. Nos EUA, um mês antes das eleições, Trump saiu dizendo que houve cédulas de papel jogadas em um rio em Wisconsin. Em setembro de 2020, um funcionário da sua campanha já havia tuitado sobre um punhado de cédulas que haviam sido erroneamente descartadas.  

No Brasil, o engajamento de posts sobre fraude deu um salto às vésperas do primeiro turno. Fakes que já haviam sido desbancadas, como o preenchimento automático de urnas com o número do PT, voltaram a circular.  

5. Tentativa de impedir votação em áreas de maioria da oposição 

Os aliados de Trump usaram vários estratagemas para impedir que eleitores com maior propensão de votar nos democratas chegassem às urnas. Na Carolina do Norte, seus partidários foram à Justiça para pedir que as regras de identificação para votar fossem mais rígidas, o que afetaria muito mais o voto dos negros, majoritariamente democratas.

Por aqui, a campanha de Bolsonaro chegou a pedir ao TSE que limitasse a disponibilização de transporte público pelas prefeituras do Brasil – ação que afetaria os mais pobres. A vantagem de Lula sobre Bolsonaro era maior nas classes mais baixas. No dia da eleição, a Polícia Rodoviária Federal (PRF) realizou operações parando ônibus para verificar se estavam em conformidade com a legislação de trânsito. Assim causou atrasos na votação e transtornos a milhares de eleitores. Houve 5 vezes mais operações no Nordeste, região que deu ampla vitória a Lula, em comparação com a região Sul, onde a maioria vota em Bolsonaro.   

6. Chamado para apoiadores serem “fiscais” das urnas e negativa de aceitar resultado 

“Estou pedindo aos meus apoiadores que compareçam aos locais de votação, observem com muita atenção”, afirmou Trump no primeiro debate com Joe Biden. O mesmo a campanha de Bolsonaro, que chegou a criar um site (“Fiscais do Bolsonaro”) através do qual qualquer cidadão poderia se inscrever para ir fiscalizar as urnas. A prática é irregular, uma vez que a lei eleitoral exige crachás assinados pelos partidos e somente dois fiscais acompanhando o trabalho de cada mesa por vez. 

“Se for uma eleição justa, estou 100% a favor. Mas se vejo dezenas de milhares de cédulas sendo manipuladas, não posso concordar”, disse o candidato à reeleição Donald Trump. Bolsonaro repetiu a frase de maneira quase idêntica várias vezes. Na sabatina do Jornal Nacional, em 23 de agosto, cobrado quanto à aceitação do rito democrático das urnas, impôs condições: “Serão respeitados os resultados das urnas, desde que sejam eleições limpas e transparentes”. Duas semanas antes das eleições, reforçou que só sua vitória seria aceitável: “Não tem como a gente não ganhar no primeiro turno. Se eu tiver menos de 60% dos votos, algo de anormal aconteceu no TSE”.

7. Parem a contagem de votos

Na madrugada seguinte às eleições nos Estados Unidos, Trump exigiu que a contagem dos votos fosse interrompida. Segundo ele, era preciso tempo para apurar as denúncias de fraudes – inventadas e ampliadas por seus próprios partidários. Às vésperas da eleição, a campanha bolsonarista tentou um golpe semelhante. O ministro das Comunicações, Fábio Faria, e o ex-chefe da Secom (Secretaria Especial de Comunicação) Fábio Wajngarten chamaram uma entrevista coletiva para dizer que a campanha de Bolsonaro havia sido prejudicada porque inserções de rádio não teriam sido veiculadas conforme a lei. Fábio Faria e Eduardo Bolsonaro pediram adiamento das eleições até que a denúncia fosse apurada, e as redes sociais bolsonaristas rapidamente viralizaram a demanda.  

8. Sem aceitar o resultado da eleição em pronunciamento

No seu discurso na madrugada seguinte à eleição, Trump disse com todas as letras que havia vencido a eleição e que houve fraude: “Isso é uma fraude para o público americano. Isso é uma vergonha para o nosso país. Estávamos nos preparando para vencer esta eleição. Francamente, nós ganhamos esta eleição”.

Bolsonaro demorou 44 horas para se pronunciar, mas, assim como o americano, não reconheceu a derrota. Afirmou que o processo foi injusto e aplaudiu os manifestantes que bloqueavam estradas para rejeitar a votação popular. “Os atuais movimentos populares são fruto de indignação e sentimento de injustiça de como se deu o processo eleitoral”.

Steve Bannon foi além: “Bolsonaro não pode conceder a derrota”, disse ele, minutos depois do resultado, ainda no dia 30 de outubro. “Esta eleição foi roubada em plena luz do dia… ultrajante”, escreveu em sua conta no Gettr no dia seguinte.

9. Uso do partido para tentar reverter o resultado eleitoral 

Pouco depois das eleições, Trump ligou para correligionários do Partido Republicano para exigir que pedissem novas contagens de votos em determinadas regiões. “Tudo que eu quero é isso. Só quero encontrar 11.780 votos, que é um a mais do que temos. Porque ganhamos o estado”, disse em uma conversa vazada. “Não tem como eu perder a Geórgia. Não tem jeito. Ganhamos por centenas de milhares de votos.”

Antes mesmo da eleição, Bolsonaro pressionou seu partido, o PL, a providenciar uma auditoria das urnas que desse base para questionamentos do sistema. A empresa Instituto Voto Legal foi contratada por R$ 1,3 milhão e produziu relatório alegando que 279 mil urnas eletrônicas, 60% do total, não tinham identificação e que alguns equipamentos travaram e precisaram ser desligados. O PL divulgou o documento a quatro dias do primeiro turno, e mais tarde o utilizou numa empreitada judicial na tentativa de anular centenas de milhares de votos. 

10. Datas para reverter as eleições e falas ambíguas  

Desde o segundo turno, as redes bolsonaristas apontam para datas que funcionam como “deadlines” para manter a mobilização, até que Bolsonaro ou as Forças Armadas ajam para reverter o resultado da eleição. Logo no dia 31 de outubro, difundiram que haveria uma previsão na Constituição de que os militares poderiam fazer uma “intervenção” se o povo se mantivesse nas ruas por 72 horas. Depois dessa data, o dia 5 de novembro, quando o Ministério da Defesa apresentou seu relatório, e o dia 15 de novembro, data da proclamação da República, foram aventados como o próximo “Dia D”. O dia da diplomação de Lula também foi apontado como um prazo que seria necessário esperar para que Bolsonaro finalmente agisse. Quando o evento foi adiantado do dia 19 para o dia 12, pipocaram mensagens alegando que, depois da diplomação, começaria um novo prazo de 15 dias para se questionar o resultado das urnas. O novo prazo, agora, é o dia 1º de janeiro, dia da posse. A frase “O ladrão não vai subir a rampa” chegou algumas vezes aos Trending Topics do Twitter. 

Tudo isso é cópia exata do que aconteceu nos Estados Unidos após a derrota de Trump. Os termos dos discursos do líder, cuidadosamente preparados para serem ambíguos, são outra tática para manter os fãs ocupados, tentando “descobrir” em discussões infinitas nas redes sociais qual seria a mensagem subliminar. Ao mesmo tempo, a ausência de uma ordem clara tenta evitar a responsabilização criminal por insuflar atos golpistas. Dois dias depois da diplomação de Lula, Bolsonaro discursou a apoiadores dizendo que “nada está perdido” e “quem decide para onde vão as Forças Armadas são vocês” – o que foi lido como uma “senha” de que, se os manifestantes mantiverem os acampamentos, os militares vão finalmente intervir.   

11. Desinfografia – derrota eleitoral seria “estatisticamente impossível”

No dia 20 de dezembro de 2020, depois de meses em que circularam falsas projeções estatísticas “demonstrando” a vitória de Trump, ele tuitou: “estatisticamente impossível ter perdido as eleições de 2020. (…) Grande protesto em DC em 6 de janeiro. Esteja lá, será selvagem!”. Foi o primeiro chamado direto do ex-presidente à manifestação que resultaria na invasão do Capitólio. 

As redes bolsonaristas também apostam em vídeos malfeitos explicando como “matematicamente” a contagem não faria sentido – exemplos de “desinfografia”, de acordo com a classificação do Media Manipulation Casebook.  O caso mais notório foi o do site argentino Derecha Diário – cujo dono é amigo de Eduardo Bolsonaro – que divulgou falsas alegações sobre diferenças nos modelos de urnas.

12. Batalha na Justiça 

Logo no dia 4 de novembro de 2020, os advogados de Trump começaram uma batalha judicial sem precedentes questionando a votação em diversos tribunais. Nada menos que 62 processos foram iniciados com base em histórias já desmentidas. Desses, 61 foram negados por juízes federais e estaduais prontamente. Então os advogados foram à Suprema Corte para tentar questionar o resultado eleitoral em alguns estados, como a Pensilvânia. A empreitada foi negada, levando o ex-presidente a chamar a Corte de “covarde” no Twitter. 

Já Bolsonaro pressionou o PL a entrar com ação no TSE para pedir o anulamento de votos em 60% das urnas, com base no relatório do Instituto Voto Legal, contratado pelo partido. Porém, a ação ignorava que as mesmas urnas apontadas pelo Instituto como problemáticas haviam sido usadas no primeiro turno, elegendo a maior bancada do Congresso. A ação foi rejeitada por Alexandre de Moraes, presidente do TSE, e o partido foi multado em R$ 22,9 milhões por litigância de má fé. Bolsonaro não desistiu e há notícias de que agora pressiona o presidente do PL, Valdemar Costa Neto, para iniciar outra ação pedindo a anulação da diplomação de Lula. 

13. Tentativa de envolver os militares 

Afora a intromissão na contagem dos votos, Bolsonaro chegou a se reunir com os comandantes militares no dia em que quebrou o silêncio e fez um pronunciamento no Palácio da Alvorada. Ele perguntou o que achavam da possibilidade de judicializar o resultado das urnas sob a justificativa de que Lula deveria estar inelegível por causa das condenações na Lava Jato. Fontes militares ouvidas pela CNN afirmaram que os integrantes das Forças Armadas não deram apoio ao presidente. 

Dois anos antes, Trump havia cogitado enfiar os militares no seu plano antidemocrático. Fontes da Casa Branca supostamente disseram que Trump discutiu a imposição da lei marcial em uma medida destinada a anular o resultado da eleição de 2020. A sugestão tresloucada não foi para frente e o Comandante do Estado Maior das Forças Armadas dos EUA atuou nos bastidores para conter o ânimo golpista de Trump. 

14. Foi a “esquerda” quem invadiu o Capitólio 

Durante a invasão do Capitólio, que está sob investigação do Departamento de Justiça e por uma CPI no Congresso americano, os partidários de Donald Trump alegaram que o quebra-quebra teria na verdade sido promovido por manifestantes “anti fascistas” infiltrados entre os trumpistas, que seriam “pacíficos” e “cidadãos de bem”.

Do mesmo modo, depois da manifestação violenta em que bolsonaristas tentaram invadir a sede da PF em Brasília e colocaram fogo em carros e ônibus, no dia em que Lula foi diplomado, a mesma desinformação começou a rodar nas redes sociais. Um comentarista da Jovem Pan chegou a dizer que o quebra-quebra era uma armação “da esquerda” enquanto influenciadores como o perfil Te Atualizei, com quase 2 milhões de seguidores no Twitter, postaram fotos tentando alegar que os manifestantes violentos não seriam de direita.

15. Não passar a faixa 

Donald Trump foi o primeiro presidente norte-americano em 150 anos que se recusou a estar presente na cerimônia de posse do sucessor. Bolsonaro avisou que será o primeiro presidente brasileiro após a redemocratização a não passar a faixa presidencial. 

Em ambos os casos, a estratégia rompe com um gesto simbólico importante para a transição pacífica e democrática do poder. Procura demarcar um protesto contra a “fraude” e deslegitimar o sucessor desde o começo do novo mandato.     

E depois? 

Mesmo após a posse de Joe Biden em 20 de janeiro de 2021, Trump manteve a versão de que foi vítima de fraude, para manter seu capital político e o controle do Partido Republicano. E também para ganhar dinheiro. Uma campanha de financiamento para “seguir lutando” e provar a fraude eleitoral conseguiu levantar o equivalente a mais de 1,3 bilhão de reais. Boa parte foi destinada aos hotéis de Trump, segundo o jornal The Guardian. 

Com mais de 50% dos republicanos convencidos de que houve fraude, a recusa da vitória de Biden também se tornou um ativo eleitoral. Mais de 100 candidatos nas eleições de meio termo de 2022 defenderam a mentira da fraude. Muitos não se elegeram, mas a influência de Trump segue grande. 

Bolsonaro pode usar esse “capital” para se manter na liderança na direita brasileira, ou utilizá-lo em benefício de seu filho mais ligado aos mentores americanos, Eduardo Bolsonaro. Afinal, ele já criou um instituto que realiza congressos conservadores importados dos EUA e vende “cursos” para “educar criticamente” os adeptos da direita brasileira – outra grande fonte de receita dos trumpistas que dobraram a aposta nas mentiras sobre fraude eleitoral.

Fonte: Agência Pública (acesse aqui)

Autor: Natalia Viana

Publicado em: 16/12/2022