A estrutura dos acampamentos, o envolvimento militar, financiadores soltos… bastidores do golpe que quase houve.
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A repórter francesa Anne Vigna compõe para o Le Monde Diplomatique um panorama da tentativa de golpe bolsonarista no 8 de janeiro.
“Dos três prédios que se distribuem em torno da Praça dos Três Poderes, o do STF foi aquele vandalizado com mais fúria. Esse ódio contra a mais alta corte de justiça do país – que, entre outras tarefas, se encarrega das eleições – casa com o que Bolsonaro costuma manifestar. ‘O ex-presidente deveria ser processado por incitação ao golpe de Estado e crime contra a democracia, dois crimes que estão previstos no código penal’, avalia a professora de Direito María Fernández. Ela acrescenta que esse também deveria ser o destino de ‘todos os políticos que reproduziram seus discursos e suas ameaças durante quatro anos’. Na sexta-feira, 13 de janeiro, o ministro do STF Alexandre de Moraes autorizou a Procuradoria-Geral da República (PGR) a investigar o envolvimento do ex-presidente no levante ocorrido cinco dias antes.
Desde o início de 2020, Bolsonaro vinha ameaçando os outros poderes – desrespeitando suas decisões e lançando seus simpatizantes contra eles – uma vez a cada 23 dias, em média.”
Invasão anunciada
No sábado, 7 de janeiro, a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) informou às forças de segurança de Brasília que 3.900 pessoas haviam chegado em 156 ônibus para se juntar ao maior acampamento bolsonarista do país: aquele instalado em frente ao Quartel-General do Exército.
Desde o dia 30 de outubro, os acampados pediam que os militares tomassem o poder para impedir a volta da esquerda. A posse de Lula da Silva, no dia 1º de janeiro, foi um banho de água fria em suas esperanças; a grande maioria voltou para casa. Ao longo da primeira semana do ano, porém, circulou uma nova convocação conclamando todos os “patriotas” a irem para Brasília. Um texto amplamente divulgado nas redes sociais e nos aplicativos de mensagens do universo bolsonarista chamava uma mobilização nacional no dia 8 de janeiro para “impedir a instauração do comunismo no Brasil e erradicar a corrupção. Exigimos a intervenção imediata das Forças Armadas e para isso vamos ocupar a Praça dos Três Poderes e seus prédios, bloquear todas as refinarias, paralisar o transporte rodoviário, as atividades industriais, comerciais e agrícolas, e suspender todos os pagamentos de impostos”. Brasília seria o centro nevrálgico da revolta, que se irradiaria para o resto do país.
“Incubadoras de terroristas”
Não foi a primeira vez que ações violentas foram fomentadas a partir do principal acampamento dos bolsonaristas. No dia 12 de dezembro, durante a cerimônia de certificação de Lula no STF, ônibus e carros foram incendiados por militantes na capital. No dia 22 de dezembro, a polícia descobriu uma bomba caseira, colocada em um caminhão-tanque próximo ao aeroporto da cidade. O suspeito, George Washington de Oliveira Sousa, de 54 anos, confessou à polícia que o atentado, concebido dentro do acampamento, visava provocar uma tragédia e assim gerar caos e obrigar as Forças Armadas a intervir para restabelecer a ordem.
Muitos brasileiros têm dificuldade em entender a brandura do governo Lula para com essa mobilização, instalada em frente a dezenas de áreas militares em todo o país desde o fim do segundo turno das eleições. O novo ministro da Justiça, Flávio Dino, quis desmantelar esses grupos assim que o governo tomou posse, chamando-os de “incubadoras de terroristas”. Porém o ministro da Defesa escolhido por Lula, José Múcio Monteiro, assumiu com a intenção de “pacificar” a relação com os militares, e em seu discurso de posse descreveu os acampamentos golpistas como uma “manifestação de democracia”. Múcio apostava no esvaziamento dos protestos, baseando-se em relatório do Exército segundo o qual os acampamentos haviam perdido força: no final de dezembro, mencionava-se uma queda no número de “militantes acampados” – de 43 mil para 5 mil. No dia seguinte ao ataque da Praça dos Três Poderes, foram desmantelados os acampamentos bolsonaristas por todo o país.
Estrutura para milhares
De longe o maior de todos, o acampamento de Brasília ocupava uma imensa esplanada. Era também o mais bem organizado, com sanitários químicos, chuveiros, espaço para influencers produzirem conteúdo, palco para oradores e estruturas equipadas a fim de garantir refeições gratuitas a milhares de “patriotas”. Em dezembro, fomos apresentados a essas instalações por Viviane, oriunda da cidade de Londrina, no estado do Paraná.
Embora a entrada no acampamento fosse livre, a mídia não era bem-vinda. “Jornalista francesa” era um dos piores cartões de visita que se poderia exibir, por causa das declarações do presidente Emmanuel Macron sugerindo dar “um status internacional à Floresta Amazônica” quando a política de Bolsonaro favorecia as queimadas. O truque então foi me apresentar como uma simples turista interessada em entender o movimento de protesto.
Dinâmica e sorridente, Viviane M. cozinhava para o acampamento. “Eu estava desempregada e me chamaram para vir aqui ajudar o movimento”, explicou a apoiadora de Bolsonaro, sem especificar quem seriam esses vagos personagens que a “chamaram”. “De jeito nenhum”, respondeu ela quando perguntada se recebia pagamento. Mas fazia dois meses que ela trabalhava ali 12 horas por dia… e mandava dinheiro para a mãe cuidar dos dois filhos pequenos que ficaram em Londrina. Atrás de grandes lonas, ela organizava os mantimentos em uma dezena de geladeiras que funcionavam por meio de geradores, enquanto nos contava as mais famosas fake news do bolsonarismo: “Se Lula governar o país, vamos virar uma Venezuela. O comunismo vai tomar conta e todo o nosso dinheiro vai para Cuba”, afirmou, separando um punhado de salsichas. As provisões chegavam de caminhão, e Viviane não sabia de onde vinham nem o que havia nos pacotes: “Preciso sempre improvisar: nunca sei de antemão o que vão trazer”, contou ela, rindo. Sempre esse sujeito misterioso, do qual Viviane nada sabia…
Financiadores soltos
Um mês depois, em meados de janeiro, a investigação da Polícia Federal já tinha identificado uma centena de empresas que financiaram o acampamento e o transporte de bolsonaristas até a capital, por meio de ônibus, no dia 8 de janeiro (ou antes). A maioria pertence aos setores do agronegócio, dos transportes e da construção civil, e estão sediadas no Paraná, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais e São Paulo – cinco estados que elegeram para governador aliados de Bolsonaro.
Alguns empresários participaram pessoalmente dos eventos do dia 8 de janeiro, como Albert Alisson Gomes Mascarenhas, proprietário de uma construtora no Pará que em 2020 chegou a ocupar o posto de recordista em contratos com o governo federal: nos quatro anos da gestão Bolsonaro, foram ao menos R$ 793 milhões recebidos da União. Outras empresas da família estão envolvidas em diversas fraudes ambientais. O engenheiro, que fez transmissões ao vivo incitando a multidão a entrar no Congresso, não está entre os presos até o momento.
O Movimento Brasil Verde e Amarelo, que reúne mais de 300 entidades ligadas ao agronegócio e é liderado pelo produtor de soja Antônio Galvan, também convocou seus membros para a invasão de Brasília. Galvan (o homem na foto que ilustra esta página) foi presidente da associação Aprosoja e candidato ao Senado em 2022 pelo PTB em Mato Grosso, tem vários processos e algumas condenações por crimes ambientais e financeiros, e desde 2021 é investigado por apoiar atos antidemocráticos bolsonaristas. Ele também segue solto.
Conivência militar
As famílias de militares estiveram muito presentes nos acampamentos golpistas. Em suas visitas regulares, a esposa do general Eduardo Villas Bôas era celebrada como convidada ilustre. Desde 2016, quando comandava o Exército, Villas Bôas vem sendo um protagonista do crescente extremismo político que contaminou as Forças Armadas, influindo diretamente em cruciais da vida nacional como o impeachment de Dilma, a prisão de Lula e a eleição de Bolsonaro. Em 15 de novembro de 2022, juntou-se aos então comandantes das três Forças no apoio às “milhões de pessoas” que protestavam “contra os atentados à democracia, à independência dos poderes, ameaças à liberdade” e “as dúvidas sobre o processo eleitoral”.
Embora não oficial, a presença de parentes de militares no acampamento era um segredo de polichinelo. Isso talvez explique a recusa inicial do Exército em desmantelar o acampamento, na noite de 8 de janeiro. Só liberaram a entrada da polícia no dia seguinte pela manhã, depois de terem dado tempo para os golpistas fugirem…
As investigações contra os golpistas avançam, mas até fevereiro pouparam os militares.
Polícias contaminadas
A conivência das forças de segurança com os militantes bolsonaristas foi ilustrada por inúmeros vídeos. Ela explica a facilidade com que os militantes de extrema-direita entraram nos prédios, onde passaram mais de duas horas executando a depredação. Em algumas imagens, podemos assistir ao clima de camaradagem entre policiais, militares e insurgentes no exterior do Congresso, enquanto a multidão já invadia o teto da cúpula. Um vídeo mostra o interior do prédio: os policiais fazem fila e deixam passar os vândalos, enquanto o cortejo segue para o Salão Verde, que dá acesso à Câmara dos Deputados. As cenas mais perturbadoras foram filmadas no Palácio do Planalto. Ali vemos um comandante militar tentando impedir a PM de prender os insurgentes. Outros vídeos do circuito interno de segurança do palácio, ainda não divulgados, seriam ainda mais problemáticos. “Quero ver todos os vídeos”, anunciou o presidente Lula em entrevista coletiva no dia 11 de janeiro. “Teve muita gente conivente. Teve muita gente da Polícia Militar conivente, muita gente das Forças Armadas aqui dentro coniventes. Eu estou convencido de que a porta do Palácio do Planalto foi aberta para essa gente entrar, porque não tem porta quebrada.”
Para Renato Sérgio de Lima, diretor do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), a conivência não surpreende: “Nossos estudos concluem que as forças de segurança têm uma forte adesão ao bolsonarismo. Eles também mostram que a radicalização das tropas foi crescendo, e de forma muito maior nesse grupo do que no resto da população”. A ONG mostrou, por exemplo, que, entre 2020 e 2021, o número de policiais que participaram das redes sociais bolsonaristas aumentou 27%. Mais de um terço das forças da ordem estariam nessas redes, sendo 21% nos perfis mais radicais. No caso da PM, que conta com um contingente de mais de 400 mil policiais, 51% das tropas estariam seguindo grupos bolsonaristas, sendo 30% em contas mais radicais. A Polícia Rodoviária Federal (PRF), que tem cerca de 13 mil integrantes, é outro foco do bolsonarismo. “Em quatro anos, essa polícia foi totalmente colocada a serviço do ex-presidente e de sua ideologia”, completa Sérgio de Lima. “Vimos a PRF realizar bloqueios no dia das eleições no Nordeste para impedir que os eleitores de Lula fossem votar. Ela participou de chacinas nas favelas ao lado da PM em 2022, quando esse não é em absoluto seu papel nem seu campo de atuação.”
Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil (acesse aqui)
Autor: Anne Vigna
Publicado em: 01/02/2023