“GOLPE NÃO HOUVE, MAS A IMAGEM DE MASSAS TOMANDO BRASÍLIA PODE SER ACESSADA NO FUTURO. SE REVOLUÇÃO HOUVER, ELA NÃO SERÁ VERMELHA.”

Desmedida do Possível – Outras Palavras – 02/02/23

Coletivo de pesquisadores propõe reflexões sobre o enfrentamento ao fascismo que se entranhou nas instituições, na política e na sociedade brasileira.

“O bolsonarismo não dá trégua. Se havia expectativa de uma pacificação nacional, o sonho acabou.”

Performance: profanação

O assalto a Brasília foi um ataque simbólico, que também foi um ataque real. E vice-versa. Foi uma performance, em que se profanaram os símbolos da república e da democracia. A mensagem é: nenhum destes objetos tem valor para nós – seja estético, histórico ou político. Estão cagando para a democracia, literalmente. Os símbolos da nação republicana se contrapõem ao sonho embrionário da pátria cristã, diluindo suas fronteiras externas numa sociedade mais ampla e em crise e, por isso, é necessário fazê-los desaparecer.

Ao quebrar os símbolos da república evocando uma intervenção militar, se escancarou uma dinâmica que chamaremos de fascista: uma subjetivação delirante, que mobiliza massas lutando por autoritarismo, como se lutassem por sua libertação.

Fascismo além de Bolsonaro

O fascismo é uma conversão subjetiva de sentido guerreiro, sádico e sacrificial. Do ponto de vista sociológico, os fascistas são múltiplos: de financistas a entregadores, de evangélicos a militares, de lúmpens a celebridades, de pobres a bilionários. Os conversos aceitam tudo: do genocídio dos campos de concentração ao genocídio da pandemia.

Esta disposição fascista é ativada por Bolsonaro, mas não é ele. Ao contrário: como o líder é débil, apela-se para o Exército. A estratégia golpista de 8 de janeiro era produzir o semblante de uma revolta popular nacional que forçasse uma missão de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), colocando o Exército nas ruas.

Catarse cristã

Os patriotas acampados por todo o país encontravam-se em estado de exaltação extrema e crescente. Ainda que financiados, deixaram sua rotina, seus trabalhos, suas famílias (enfim, a normalidade), para ouvir e reafirmar diariamente que a redenção da comunidade que eles imaginam – “a nação cristã” – só aconteceria por meio de uma destruição necessária. A invasão ao Congresso representou a passagem da espera messiânica por um “grande acontecimento” profético, para a tentativa ativa de alcançar o mundo do milênio, que tem a forma de uma pátria totalmente cristã. O evento com data marcada foi também uma catarse religiosa, deflagrada pelo quebra-quebra.

Além de ser catártica, a invasão produziu um sentido: reforçou os limites externos da pátria-cristã imaginada, uma pátria que fala a língua do texto bíblico. Essa comunidade foi fermentada por experiências que antecederam os acampamentos no período eleitoral, como “marchas para Jesus” ou manifestações do sete de setembro, reunindo pessoas vindas de várias partes do país que não guardam relação entre si. Essas jornadas formaram significados: nós somos patriotas e cristãos e por isso estamos aqui, nesses mesmos espaços, vamos aos mesmos lugares, usamos a mesma camiseta amarela, vivemos a mesma temporalidade (“nós” acreditamos que o fim está próximo) e falamos a mesma língua (um português enxertado com a linguagem velho testamentista e apocalíptica). Nesse nacionalismo messiânico, milenarismo e pátria cristã se confundem.

Acabar com “eles”

O reforço do sentimento de um “nós”, que pertence exclusivamente ao embrião de pátria-cristã, envolve apagar a existência de “eles”. A camiseta da seleção “é nossa” e a Praça dos Três Poderes não pode ser ocupada “por eles (que tomaram esse espaço uma semana antes, na posse de Lula). O direito dos “patriotas” à nação é tão natural como o direito do capitalista aos meios de produção. Circuitos de reconhecimento e de direitos são comprimidos: a nação é um “nós”, restrito aos patriotas. É preciso botar pra fora esquerdistas, migrantes, índios, professores, artistas e outros inúteis.

Efeito demonstração

Golpe não houve, mas a imagem de massas tomando Brasília pode ser acessada no futuro. Qual seria o efeito de uma performance similar, em um momento em que o governo estiver acuado, com a popularidade em baixa?

Em outro nível, os patriotas criam o seu script mundial. Os brasileiros foram impulsionados pelos patriotas do Capitólio, e avançaram mais uma casa: tomaram os três Poderes, visando produzir um golpe. Ainda que não tenham conseguido, essas “catarses” são fundamentais para construir um script, inclusive a partir das imagens que geram. Reproduzidas infinitamente pelas redes sociais, permitem a relativa unificação de uma visão de mundo de extrema-direita, no plano nacional e internacional.

Avesso da revolução

No plano institucional, o tiro saiu pela culatra. Mas a guerra bolsonarista transcende este plano, e sua eficácia desafia o realismo político. Lembremos que Bolsonaro quase se reelegeu pela destruição causada por seu governo, e não apesar dela.

Dado que o tempo da espera messiânica não é linear (como o tempo progressista), pois passado e futuro estão fusionados em uma guerra pela eternidade, será que faz sentido pensar o êxito dos patriotas no registro de um “plano racional” de tomada do poder?

Talvez o maior triunfo desta política não seja ganhar eleições ou conseguir a intervenção militar, mas virar do avesso o sentido da revolução. Pois se revolução houver no mundo no futuro próximo, ela não será vermelha.

Esquerda punitivista?

A esquerda defende as instituições para que as instituições defendam a sociedade – e a própria esquerda. Afinal, historicamente o fascismo destrói sociedades, defendendo o capital.

No bojo da reação ao assalto bolsonarista ganhou corpo um afã punitivista na esquerda. É evidente a necessidade de punir os manifestantes. Mas não estaríamos flertando com um gozo punitivista? Nessa esquerda de cidadãos do bem nos tornaremos todos policiais?

Confiaremos no Estado para enfrentar um fenômeno político que ganha força por fora da política institucional? Como delegar ao exército e à polícia a tarefa de investigar e punir um movimento político que os atravessa de cima a baixo?

O apoio à punição estatal pode ser sintoma de uma impotência geral para impedir a disseminação do bolsonarismo na sociedade. Mas como se defender dele sem o Estado?

Para enfrentar estes dilemas, Marx sugeria: análise concreta da situação concreta. É necessário investigar e punir os crimes do governo Bolsonaro, assim como é preciso punir os assaltantes de Brasília e seus cúmplices. Se houver uma nova anistia, a ameaça militar penderá de forma permanente sobre os civis. E alimentará o messianismo bolsonarista na sua busca perpétua por salvadores da pátria.

E se Roraima se tornar a regra?

A multiplicação de clubes de tiro no país nos últimos anos seguiu a expansão da fronteira do agronegócio e da mineração na Amazônia legal. São núcleos de socialização e articulação política do bolsonarismo.

E se Roraima se tornar a regra e não a exceção? E se a fronteira não for lugar do atraso, mas espelho do futuro?

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O Coletivo Desmedida do Possível é constituído por Antonio Mota, Daniel Feldmann, Debora Goulart, Fabio Agostinho, Fabio Luis B. Santos, Fernando Cunha Sato, Fernando Kinas, Frederico Lyra, Gabriel Rocha, Guilherme Meyer, Henrique Costa, Isabel Loureiro, Patrícia Mechi, Tales Ab’Saber, Thais Pavez, Thiago Cannetieri.

Fonte: Outras Palavras (acesse aqui)

Autor: Coletivo Desmedida do Possível

Publicado em: 02/02/2023