“O QUE SE ESTÁ TRATANDO DE FAZER É CONSOLIDAR A NATURALIZAÇÃO DE UM DISCURSO VIOLENTO, GOLPISTA E QUE SE NEGA E RECONHECER A LEGITIMIDADE DE MAIS DA METADE DOS ELEITORES.”

Natalia Viana – Agência Pública – 12/12/22

Diretora-executiva da Agência Pública, Natalia Viana comenta a situação do terrorismo doméstico que começa a moldar uma nova etapa da extrema-direita no país, reflexo de um fenômeno mundial para o qual ainda não há solução a vista: a radicalização em massa.

[O texto foi publicado no dia 12 de dezembro, horas antes de bolsonaristas protagonizarem em Brasília mais um episódio de violência extremista.]

Terrorismo no Brasil: 2016

A primeira vez que o Brasil prendeu suspeitos de terrorismo foi em 21 de julho de 2016, duas semanas antes do começo dos Jogos Olímpicos. Sob Alexandre de Moraes, então ministro da Justiça, a Polícia Federal colocou dez homens em regime fechado, preventivamente. Eram seguidores do Islã radicalizados, atiçados ainda mais por um infiltrado da PF que agia em grupos de Facebook e Telegram, fomentando ilusões de um ataque terrorista. Mas eles chegaram, no máximo, a sondar como seria tal ato durante os jogos; falaram em “envenenar os reservatórios de água” do Rio de Janeiro. Chocou-me na época não haver um plano concreto que embasasse as prisões e posteriores condenações. Um deles, pelo estigma, foi linchado dentro da penitenciária e morreu aos 36 anos.  

Terrorismo no Brasil: 2022

Pulemos para 2022, quando vemos não apenas figuras públicas falando abertamente sobre realizar ataques violentos e romper a ordem democrática, como o presidente do PTB, Roberto Jefferson, atirando granadas e tiros de fuzil contra policiais; e a deputada federal Carla Zambelli caçando um opositor de arma em punho em plena região da Paulista. Não houve grandes prisões dos que bloquearam estradas e ainda acampam em frente de quartéis pedindo a quebra da ordem democrática – as decisões vindas do mesmo Alexandre de Moraes têm priorizado suspensão de contas em redes sociais e bloqueios financeiros. Ainda assim, muitos expressam que o Supremo está abusando dos seus poderes. Esqueceram-se como nossa Justiça já tratou “terroristas” no passado. 

Ameaça mundial

Uma das ameaças à segurança que mais crescem hoje em dia, mundialmente, são os grupos radicalizados à direita, fenômeno que caminha de mãos dadas com as teorias da conspiração que correm soltas em redes sociais. Na semana passada, a polícia alemã prendeu 25 suspeitos de planejar uma invasão armada do Parlamento para derrubar o governo. O ministro da Justiça descreveu a ação como uma “operação antiterrorista”, necessária porque muitos dos suspeitos tinham acesso a armas. Qualquer semelhança com a invasão do Capitólio, nos Estados Unidos, em 6 de janeiro de 2021 não é mera coincidência. Entre os presos mais ativos havia ex-militares, frequentadores de fóruns de teorias da conspiração como o QAnon, uma policial e até um príncipe. O QAnon prega que os Estados Unidos (mas pode ser transplantado para qualquer país) é governado por uma elite secreta, um “Deep State” (Estado Profundo) que de fato controla todos os políticos.

O FBI reconhece a tendência ao extremismo político de ultradireita como uma das maiores ameaças à segurança interna, conforme explicou há algumas semanas o diretor do Bureau ao Congresso americano. Por sua vez, o ministro de segurança interna Alexandro Mayorkas disse em claro e bom som que as plataformas de redes sociais “permitem que indivíduos e nações aticem as chamas do ódio e das frustrações pessoais para grandes audiências” e que “estão incentivando as pessoas a cometer atos violentos”.

Presidente convoca

O extremismo político que vivemos é fomentado não só pelas plataformas, mas pelo presidente em exercício, que na última semana saiu do seu silêncio sepulcral para dizer aos apoiadores que “nada está perdido” e “quem decide para onde vai as Forças Armadas são vocês”.

Não se pode esquecer que esse mesmo presidente afirmou inúmeras vezes estar ampliando a posse de armas no país porque “povo armado jamais será escravizado”, o que sempre foi um chamado à violência política. O número de armas nas mãos de civis, hoje, supera as armas nas mãos de militares.

O que fazer?

O perigo não está em uma ação que possa de fato reverter o curso da eleição de Lula, mas na importação de mais uma das mazelas americanas, a figura do lobo solitário que invade escolas e cinemas para realizar execuções em massa ou, nas palavras do próprio presidente, “metralhar a petralhada”. As eleições de 2022 já foram as mais violentas da última década. No período eleitoral morreram pelo menos 15 pessoas vítimas de violência política.

É possível que entremos numa era de psicopatologia social externada por ações de extremismo político. E, no entanto, não há uma discussão mais ampla sobre o que podemos fazer para desradicalizar essa parcela da população que se perdeu em devaneios auto-heroicos sobre um golpe de Estado redentor. 

Há pouca literatura sobre o assunto, e menos ainda ações concretas para buscar retomar contato com essas pessoas. Outro dia, uma colega contou sobre um primo que raspou o cabelo e chegou a despedir-se da família para embarcar em uma ônibus que iria “salvar o país”: estava pronto a morrer pelo seu mito. Ele não é o único. 

Radicalização em massa

Durante minha estadia em Harvard, tive o prazer de conhecer o fotojornalista Jim Urquhart, da Reuters, que se especializou em cobrir as milícias rurais americanas de ultradireita e, mais recentemente, os movimentos supremacistas brancos. São de sua autoria algumas das fotos mais icônicas da invasão do Capitólio. Quando o conheci há um ano, Jim carregava a tensão de cobrir grupos altamente armados, violentos na fala mais corriqueira, racistas, homofóbicos e obcecados com teorias e histórias infundadas sobre como o mundo funciona (e, claro, ávidos leitores de grupos conspiracionistas). Ouvir sua perspectiva é chocante. 

A discussão sobre a desradicalização chegou a ganhar impulso na mídia americana, mas terminou sendo esquecida. Nada foi feito de realmente relevante para resolver o fenômeno. Em uma entrevista, Michael Jensen, especialista em terrorismo e extremismo, alertava para o fato de estarmos lidando com um novo tipo de extremismo – a radicalização em massa. “Simplesmente não temos experiência com nossas modernas tecnologias de comunicação para lidar com algo como um programa de desradicalização em massa. Nos exemplos históricos que podemos apontar – a Alemanha nazista e lugares assim – as ferramentas usadas simplesmente não são aplicáveis ​​em nossa situação”. 

No máximo, ele propunha uma campanha de “conscientização pública” liderada por formadores de opinião da direita, que buscasse trazer os radicais de volta à normalidade. E alertava que não ia adiantar nada Joe Biden dizer – assim como Lula está dizendo –  “vamos resolver nossos problemas juntos”. 

“Para esses grupos ele é parte da facção inimiga. Temos que ver indivíduos de dentro desses grupos saindo e dizendo: “OK, já chega”.

Acontece que isso não aconteceu nos EUA, onde o cálculo político ainda leva em conta que é vantajoso ter uma porção significativa da população acreditando que os democratas fraudaram as eleições de 2020. E, parece, tampouco vai acontecer por aqui.

Fonte: Agência Pública (acesse aqui)

Autor: Natalia Viana

Publicado em: 12/12/2022