“FICA CLARO QUE O EX-PRESIDENTE É PRODUTO DE UM PROJETO NASCIDO NO CLUBE MILITAR, EM QUE SE REÚNEM OS MILITARES DA RESERVA, QUE ODEIAM QUALQUER PROPOSTA PROGRESSISTA E DESEJAM VOLTAR AO PODER.”

Nubia Silveira – Parêntese – 04/02/23

“No Brasil e em certos países latino-americanos as conquistas costumam vir com uma sombra fardada. Perigo previsto por Platão em República, sua obra mais importante: os militares são capazes ‘de alargar a sua perigosa influência a toda área da política’. Daí o receio dos civis”.

A jornalista Nubia Silveira analisa “O difícil relacionamento entre civis e militares” na história brasileira, especialmente os percalços a partir da redemocratização, que redundaram no enorme retrocesso sob Jair Bolsonaro e nas ameaças que continuam a pairar sobre nossa frágil democracia depois de seu governo.

Ameaça perene

Os armados sempre se viram como herdeiros do quarto Poder, o moderador, exercido pelo imperador até 1889, quando, num golpe, o Marechal Deodoro da Fonseca declarou a República e exilou para sempre o seu amigo D. Pedro II. Desde lá os brasileiros vivem o medo de que a quartelada se repita. E ela se repetiu algumas vezes, apesar de os militares serem “servidores públicos comuns e não agentes políticos”, como afirma o procurador Airton Florentino de Barros. “A razão é simples. Político armado não governa. Torna reféns os cidadãos.”

Sarney e a democracia tutelada

O cientista político Jorge Zaverucha, autor de Relações civil-militares no primeiro governo da transição brasileira, afirma que os processos de transição da ditadura para a democracia podem resultar em três situações:

1 – A transição é concluída quando “os civis conseguem controlar, democraticamente, o comportamento político dos militares” e são abolidos “os enclaves autoritários dentro do aparelho de Estado”.

2 – A transição falha totalmente quando militares ou civis derrotam os que buscam implantar a democracia.

3 – A transição não se completa, mas também não é um fracasso. Neste caso, os militares seguem tendo “áreas autônomas de poder político”. O poder civil passa a medir, continuamente, a reação dos militares às suas decisões. Esta é a chamada democracia tutelada, em que as Forças Armadas ainda intimidam os civis e prejudicam a consolidação de democracia.

O Brasil vive, desde 1985, a situação de democracia tutelada. tornado presidente, José Sarney não teve coragem para colocar um fim na sombra verde-oliva. No seu governo houve uma “relação simbiótica, onde Sarney e os militares se beneficiaram de uma cooperação não democrática”. O cientista político cita em seu artigo 39 momentos históricos em que o primeiro presidente da redemocratização acomodou-se à autonomia política dos militares, mesmo contra o interesse de civis.

Constituição de 88 e o artigo 142

A Constituição de 1988 deixa claro a submissão dos fardados ao poder civil, veda a filiação partidária de militares, proíbe que sejam sindicalizados e façam greve. Às Forças Armadas cabe “enfrentar a guerra com Estado inimigo, impedir ou repelir invasão do território nacional por forças estrangeiras e garantir internamente a ordem pública, seja, nos primeiros casos, para proteger a soberania do país, seja, no último, para assegurar a integridade dos três poderes constitucionais”.

Apesar de a nossa Carta Magna reconhecer a existência de apenas três poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário –, os militares brasileiros aferram-se ao artigo 142 que, segundo eles, lhes concede o poder moderador, esquecendo que não podem tomar qualquer atitude sem que sejam convocados a agir por um dos três poderes.

Bolsonaro e o projeto do Clube Militar

Nos últimos anos assistimos ao retrocesso da democracia, com politização do Exército, Marinha e Aeronáutica promovida por Bolsonaro, que lotou o Planalto e os ministérios com militares ocupando cargos de civis, algo nunca visto desde a redemocratização.

Olhando para trás fica claro que o ex-presidente é produto de um projeto nascido no Clube Militar, em que se reúnem os militares da reserva que viveram ou nasceram na ditadura, odeiam qualquer proposta progressista e desejam voltar ao poder.

Durante seus quatro anos no Planalto, o “mito” incitou seus seguidores civis e militares a darem o golpe se ele não fosse reeleito. Bolsonaro tem como um dos seus ídolos e orientadores o general Villas Bôas, gaúcho de Cruz Alta, um dos mais ativos no Twitter com críticas ao estado democrático de  direito. Ele criou um Instituto que leva o seu nome e que, em parceria com os Institutos Sagres e Federalista, elaborou um “Projeto de Nação” com propostas para o País até 2035, divulgado em maio de 2022.

Suzeley Kalil Mathias, professora da Unesp, especialista em Forças Armadas e Segurança Internacional, acredita que a divulgação do projeto atropelou o Brasil e o povo brasileiro. Para a professora, os militares escancararam seu desejo “de participarem do processo político brasileiro sem terem sido chamados a isso”. “Eles se colocam contra a Constituição. As Forças Armadas não representam a nação, mas insistem em querer se apresentar como poder tutelar. É impressionante a falta de empatia desses militares com a sociedade brasileira”, afirmou em entrevista ao podcast da Unesp.

Em mensagens nas redes sociais e artigos em vários veículos, em especial na Revista do Clube Militar, os fardados incentivam a radicalização e o discurso de ódio.

Partido Militar e a democracia rejeitada

Surgiu – extraoficialmente – o Partido Militar. As forças de segurança civil e militar, federal e estadual, foram quase que totalmente contaminadas pela cartilha do presidente.

Não havia mais diálogo ou jogo entre o poder civil e as Forças Armadas, como ocorreu no período da democracia tutelada. Os militares tinham voz e poder para decidir e atacavam abertamente os outros poderes, tendo na mira o Supremo Tribunal Federal (STF) e Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

O surgimento dos protestos de eleitores de extrema direita logo após ser divulgado o resultado da eleição presidencial já era esperado. Os radicais de direita, tremendamente organizados, buscaram ajuda em frente aos quartéis do Exército. Passaram mais de dois meses gritando por um golpe. Calado, o derrotado encorajava-os a tomar o poder com as próprias mãos. Foi o que tentaram no dia 8 de janeiro. É certo que voltarão a atacar, com o apoio de militares e a orientação do norte-americano Steve Bannon, ex-assessor de Donald Trump e amigo dos filhos de Bolsonaro.

Uma nova transição, 38 anos depois?

Lula agiu rápido para combater os destruidores, punir os que deveriam defender os Poderes e não o fizeram e deixar claro que o comandante das Forças Armadas é o presidente. Com pouco mais de um mês de governo, retomou a transição entre autoritarismo militar e democracia.

A missão não será fácil. A agência Pública divulgou textos da Revista do Clube Militar em apoio aos protestos por um golpe. “O grito dos insatisfeitos com os acontecimentos hoje no Brasil, no sentido de uma quebra institucional, pode até parecer ilegal, mas é justo e justificado”, afirma o presidente do Conselho Editorial do Instituto Villas Bôas, general Marco Aurélio Costa Vieira. Coordenador do Projeto de Nação, o general Luiz Eduardo Rocha Paiva escreveu o texto intitulado Vocês merecem admiração, respeito, acolhimento e esperança, no qual afirma que as manifestações em frente aos quartéis eram “legais, legítimas, pacíficas, espontâneas e plenas de espírito cívico e patriótico”. O general Paiva, que se refere aos radicais de extrema direita como “nossos irmãos da Primavera Brasileira” também anunciou: “Haverá uma série de movimentos legais, legítimos e ordeiros, mas permanentes e afirmativos, que tornarão o governo inviável”. Ou seja, a extrema direita bolsonarista se prepara para mais protestos violentos, com a intenção de minar energias e recursos do governo Lula.

Se eu estivesse no lugar de Lula ficaria de olho nos golpistas da ativa e, em particular, da reserva, como os generais Augusto Heleno, Braga Neto, Eduardo Villas Bôas, Luiz Eduardo Rocha Paiva e Marco Aurélio Costa Vieira. Ficaria muito atento às ações do Clube Militar e às redes sociais da extrema direita. No dia 9 de janeiro já se encontravam nas redes novos vídeos de radicais furiosos, chamando para outro ataque aos três Poderes.

Reforma à la espanhola

Poucos países conseguiram resolver as relações entre civis e militares. A jornalista Rosa Freire D’Aguiar, que acompanhou a política espanhola após a morte do ditador Francisco Franco, em 1975, até a eleição do socialista Felipe González, em 1982, conta no artigo Militares, poder, ditaduras: longe da tentação como o governo conseguiu afastar a tentação golpista dos militares.

A reforma militar espanhola teve três eixos principais: enterrou definitivamente a noção de inimigo interno, revisou o ensino militar e removeu das chefias os militares franquistas.

Fica aí uma sugestão para o presidente Lula e seu ministro da Defesa, José Múcio Monteiro Filho. Resta saber se Múcio é a pessoa certa para promover uma reforma à la espanhola e pacificar o relacionamento entre civis e militares no Brasil.

Fonte: Parêntese (acesse aqui)

Autor: Nubia Silveira

Publicado em: 04/02/2023