Francisco Carlos Teixeira da Silva – Headline – 15/12/22
Professor aposentado de História Moderna e Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Francisco Carlos Teixeira da Silva é especializado na questão militar. Durante décadas lecionou em academias como a Escola de Guerra Naval e do Comando e Estado-Maior do Exército, e foi assessor do Ministério da Defesa até 2018. Catorze dos 16 militares do Alto Comando do Exército foram seus alunos ou trabalharam com ele.
Francisco Carlos tem pesquisado os atos antidemocráticos, visitou acampamentos de bolsonaristas do lado de fora do Comando Militar do Leste, no Rio de Janeiro, e do Quartel-General do Exército, em Brasília, de onde partiram alguns dos envolvidos no quebra-quebra no dia da diplomação de Lula. E está escrevendo um livro comparando a participação dos militares e a extrema-direita no Brasil e na Espanha. “A pactuação é muito semelhante, e não por acaso, os dois países estão atualmente em crise, com os militares em cena”.
Militares endossam os acampamentos?
Tecnicamente, os acampados estão em áreas públicas pertencentes à gestão das prefeituras, e a gestão da polícia é do estado. É uma situação tripartite difícil. Isso é o que tem sido dito por fontes militares como a razão pela qual não podem se manifestar. Eles estão perturbados, isso cria um clima de tensão, para entrar nos prédios você tem que passar por verdadeiros corredores poloneses. No Comando Militar do Leste, é tão alto o megafone que, dentro da sala do comando, não conseguia ouvir o que as pessoas falavam. É uma perturbação intensa. Há uma dificuldade enorme dos comandos militares em dar uma ordem ou fazer uma declaração de basta, pelo menos até 1º de janeiro.
Organização tipicamente militar
Um percentual muito elevado, beirando os 70%, das pessoas que estão nos acampamentos no Rio de Janeiro e em Brasília são parentes de militares. Há também um grande número de militares da reserva. Encontrei membros oficiais superiores da reserva ali, tanto das Forças Armadas quanto da Polícia Militar. E com muita organização, aparelhos de som muito bons, banheiros químicos, tenda de alimentação, quer dizer, emana inclusive o espírito de um acampamento militar, com barracas, etc. Há horários fixos para ter pique de manifestação, coisas desse tipo. Muitos, quando chega 22h, vão dormir e voltam 8h da manhã no dia seguinte. Trata-se de algo organizado e financiado, não espontâneo, que nasceu de massas bolsonaristas radicais enlouquecidas.
Não vão desaparecer
Esse tipo de análise está turvando a capacidade, seja da Justiça, seja do novo governo, de ver o que de fato está acontecendo. O novo governo tem me feito lembrar da peça teatral O Rinoceronte, de Eugène Ionesco. O rinoceronte na sala incomoda muito, mas vamos fingir que ele não está ali. Vamos fingir que a gente não está vendo eles e que logo vão desaparecer. Mas além do rinoceronte não desaparecer, muitas pessoas estão se transformando nele, tal e qual a peça.
Uso da força
Quando for necessário agir, por exemplo, usando gás lacrimogêneo, essas coisas, seria a primeira vez que se utilizaria força contra manifestantes de extrema direita no Brasil, inclusive de classe média, pertencentes a instituições de controle da própria violência do Estado. Dentro das Forças Armadas não há unanimidade. Quadros médios – capitão, major, tenente-coronel – estão muito descontentes com o resultado da eleição e não o aceitam. Essas pessoas partilham com os acampados o mesmo sentimento de revolta. O que tem mantido aparentemente coeso o edifício das Forças Armadas é o Alto Comando do Exército, que impacta diretamente na Marinha e Aeronáutica por ser a força mais numerosa e detentora do poder letal.
Nova estratégia é a insurreição
O Alto Comando do Exército, na atual composição, é inteiramente legalista e profissional. Não existe disponibilidade para uma aventura como um golpe, mas não é impossível, e acho que é a nova estratégia, a ideia da insurreição. A iniciativa não seria das Forças Armadas, mas de movimentos populares, patriotas ou similares, que estariam disponíveis para ações como vimos em Brasília: tumulto generalizado, invasão de prédios, etc. Esse modelo já tinha acontecido no Ceará [na greve dos policiais], na Bolívia e foi o modelo do Capitólio. Insurreição como forma de legitimizar, ou popularizar, uma bandeira da extrema direita. As falas de Bolsonaro e de Mourão são elementos fundamentais dessa ideia de insurreição, e o modelo por trás é a Marcha sobre Roma (quando os fascistas tomaram o poder na Itália com Mussolini em 1922), que mostra o caráter populista do fascismo. Há possibilidade real de insurreição.
Exército reprimiria insurreição?
Se a força de alguma forma vier a ser chamada para reprimir esses “patriotas”, isso vai quebrar a coesão que já está muito frágil dentro das Forças Armadas. E poderemos assistir o que seria o maior pânico do Alto Comando, movimentos de quebra de hierarquia e desobediência. Hoje o que mais se fala dentro do Exército é sobre a manutenção da hierarquia e da disciplina, e está se fazendo uma força intensa para se manter isso. A chegada do general Gonçalves Dias está sendo saudada como muito boa. O Gonçalves Dias indo para o GSI, dentro do Palácio, e que tem o controle das informações, como a Abin, conhece perfeitamente o valor da disciplina e da hierarquia. E isso acalma o Alto Comando de certa forma.
Morismo nas Forças
O sentimento pró juiz Moro nas Forças Armadas parece que não foi abalado por tudo o que aconteceu. É uma relação umbilical. Ele foi muito homenageado em todo o processo da Lava Jato, visitou todas as unidades militares do Brasil, recebeu todas as comendas, foi a todos os jantares de honra. E os militares não estão vendo o que aconteceu na Lava Jato, é como se não tivesse acontecido a Vaza Jato. Eles continuam, essa camada média, achando que Lula é ladrão.
Anti-Constituição
Ideologicamente, os militares jamais aceitaram a Nova República. Lula, Dilma ou Comissão Nacional da Verdade não são a causa do mal estar. Eles nunca aceitaram a Nova República nos termos em que ela foi proposta. Para eles, Sarney, Itamar ou FHC são todos iguais ao Lula. Claro que é um problema de formação. Tudo que está sendo dado dentro das academias, das escolas militares, é uma reprodução permanente desse hábito militar, dessa cultura, de superioridade em relação aos civis e de terem a capacidade de tutelar a nação. A ideologia da tutela funciona e é antiga no Brasil. Pelo menos desde o tenentismo, que está fazendo cem anos. Os militares desenvolveram uma ideologia de superioridade aos políticos e de responsabilidade paternal pela República.
Instituições se radicalizando
Não sei se o Lula, com sua imensa capacidade de negociação e jogo de cintura político advindo da vida sindical, está entendendo o processo de radicalização à direita dessas pessoas e instituições como a Polícia Rodoviária Federal, a Polícia Federal, as Polícias Militares, parcela das Forças Armadas. E parcelas da magistratura. Pequenos atos, como uma juíza negar uma causa ao Chico Buarque porque não sabe se ele é ou não o autor de uma música, não é uma manifestação de Justiça, mas de opinião ideológica.
Várias instituições estão se radicalizando. E vários detentores de cargos públicos esqueceram atributos clássicos da burocracia, como a impessoalidade. O cargo não é deles, é do Estado. Não sei se o Lula está entendendo esse grau de radicalização da sociedade. Se ele está entendendo, há possibilidade de agir como negociador? O processo de radicalização [das forças policiais e militares] é o que elas conhecem, sobretudo a partir de binômios simples, amigo-inimigo, patriota-traidor, corrupto-honesto. Para eles, o mundo é todo formado por pares binários simples, que não comportam a negociação, o diálogo típico da democracia. Se eles aceitassem isso, não seriam de extrema direita.
Fim da “cordialidade”
Essas pessoas só entendem a linguagem da força, não há como convertê-las. Elas precisam ficar ameaçadas de perder a aposentadoria, a patente, o cargo. As sociedades estão condenadas a conviver com grupos minoritários radicais, de extrema direita. Veja o que aconteceu na Alemanha na semana passada. Nos EUA, continuam a contestar a legitimidade de Biden. Devemos tirar lições desses episódios em vez de imaginar mais uma vez que somos o país da ternura e da solidariedade, que no fundo somos todos brasileiros e vamos nos congraçar num abraço. A ilusão da cordialidade brasileira, nesse caso, vai fazer muito mal. Temos uma extrema direita organizada, poderosa, que teve uma votação enorme. Trata-se de novidade para essa mística brasileira da cordialidade.
Autoridades inertes
Esse desdobramento muito violento [em Brasília] teve uma acolhida por parte das autoridades. Não foi só um bloqueio de rua. Você tentou libertar um preso usando de violência, isso é muito grave. O governo do Distrito Federal, o secretário de Segurança dele e o ministro da Justiça ficaram inativos. Você incendeia carros, tenta invadir prédios públicos e não tem ninguém preso. Há fotos de PMs confraternizando com os arruaceiros durante os atos de arruaça, isso é muito grave e implica crime de responsabilidade.
É terrorismo?
Claro, trata-se disso. É preciso ter essa clareza. Se não for considerado dessa forma, mais uma vez se está cometendo um ato de descumprimento da lei. E, nesse momento, descumprir a lei incentiva esse tipo de ação.
Brasil e Espanha
Estou escrevendo um livro em parceria com o professor Karl Schurster, da Universidade de Vigo, na Espanha, chamado A República Sitiada, sobre as diversas formas de participação política dos militares na Espanha, Portugal e Brasil. A Espanha faz a transição para a democracia num espaço de três, quatro anos de diferença para o Brasil. A lei de anistia na Espanha é de 1978, no Brasil é de 1979. A pactuação dos partidos políticos, inclusive as reivindicações da justiça de transição, são espelhadas uma na outra. E ambas estão em crise agora.
Os militares espanhóis têm aproximação com os partidos de extrema direita, como o Vox. No início do ano saiu um documento horrendo, uma lista com mais de 3 mil militares afirmando que era preciso uma nova guerra civil na Espanha. Isso mostra que essas transições pactuadas com o antigo regime ditatorial têm um limite de duração e uma elasticidade baixa. Enquanto nas transições feitas por colapso, como é o caso da Argentina, Portugal e Grécia, a democracia se estabelece com mais vigor.
Fonte: Headline (acesse aqui)
Autor: Lucas Ferraz
Publicado em: 15/12/2022