“O ARGUMENTO DAS ‘QUATRO LINHAS’ É O CONCEITO DE GOLPE NO BRASIL. TODO GOLPISTA SEMPRE TERÁ UM JURISTA PARA CHAMAR DE SEU.”

Lenio Luiz Streck – Folha de S. Paulo – 08/02/23

Não há previsão em nenhuma Constituição de proibição de golpe de Estado. Claro, porque se der certo, os golpistas se instalam no poder. O máximo que a lei prevê é que a tentativa de golpe é crime. Questão de lógica: o vencedor do golpe não pode ser punido porque foi exitoso; o perdedor terá que ser punido porque sua tentativa de impedir deu errado.

O “Valgate”, revelado pelo senador Marcos do Val, mostra os muitos tons da criatividade golpista: gravar o presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), com suporte do serviço de inteligência do Planalto, para forjar uma prisão criminosa, atesta isso.

Roupagem jurídica

Olhando a história do Brasil, vemos que os diversos golpes — é possível contar pelo menos dez — sempre tiveram, com exceção talvez da Proclamação da República, uma roupagem jurídica. Trata-se de uma juscamuflagem e, em nome do direito, se rompe o direito.

Veja-se o que disse Pontes de Miranda, poucos dias após o golpe de 1964: “As Forças Armadas violaram a Constituição para poder salvá-la”. Viram? Basta querer justificar. Sempre se acha um jeitinho brasileiro de disfarçar o golpe. “Para o bem da nação e utilizando as leis tais e tais” (algo que serve para qualquer coisa) se derruba o governante.

Ditadura “em nome da lei”

Antes da destituição de João Goulart, a base governista e os conspiradores chegaram a disputar a narrativa sobre quem se colocava em defesa da legalidade. Em 1961, durante a crise da renúncia de Jânio Quadros, os golpistas foram derrotados pela Campanha da Legalidade, de Leonel Brizola. Pouco tempo depois, a situação se inverteu. Com apoio de amplos setores da comunidade jurídica, a destituição de Jango passou a ser tratada como um ato de defesa da legalidade contra o espantalho do comunismo.

Talvez por isso o golpe de 1964, uma autêntica quartelada, ainda seja chamado por alguns de “movimento”.

Já nos primeiros dias da ditadura, juristas foram consultados para apresentar uma fórmula. Depois de analisarem muitas propostas, os generais optaram pelo ato institucional de Francisco Campos e Carlos Medeiros Silva, que asseguraram que a ditadura seria imposta “dentro da lei”.

Em 1968, os generais aprofundaram as medidas autoritárias e instituíram o AI-5, que dava ao presidente poderes imperiais “de acordo com a lei”. Em 1977, Geisel usou o AI-5 para “legitimar” o fechamento do Congresso, a suspensão das eleições para governador e a criação do senador biônico.

Os generais queriam que o Brasil fosse visto como uma democracia, com alternância de generais na Presidência, com o STF e o Congresso Nacional aparentemente funcionando dentro da normalidade e com um bipartidarismo fictício (Arena–MDB) para dizer que existia pluralismo político. Assim funcionava a dupla face da legalidade autoritária brasileira: de um lado, o verniz da normalidade institucional; de outro, a repressão nua e crua.

Golpe “dentro das quatro linhas”

Dá para entender melhor agora o argumento de Bolsonaro das “quatro linhas”? Esse é o conceito de golpe no Brasil, segundo a Constituição e para “salvar a democracia”.

O golpe mais anunciado da história brasileira foi o 8 de janeiro. O presidente e seu entorno lançavam mão de uma ultracamuflagem jurídica: o famoso artigo 142 da Constituição, que, para a tese camufladora, é um dispositivo que cria um gatilho de autoimplosão da Carta e do sistema democrático. Claro, tudo “dentro da legalidade”, não é mesmo?

O lema é “tudo dentro das quatro linhas”, como se pode ver pelo rascunho encontrado na casa do ex-ministro da Justiça e pela declaração do presidente do partido do presidente da República, Valdemar Costa Neto, que disse que rascunhos de decretos de estado de defesa e afins rolavam aos quatro cantos. Ele disse mais: como o presidente não encontrou modo de alterar o resultado das urnas dentro das quatro linhas, desistiu do golpe. Pronto: eis o conceito. Golpe dentro das quatro linhas. Criação bem brasileira.

Todo golpista chega ao poder dizendo que vai cumprir a lei. “Prometo manter, defender e cumprir a Constituição”, disse Castelo Branco. Pronto. A junta militar disse isso também em 1968. Ora, a lei…

Aí vem mais uma das lições desse imbróglio: todo golpista sempre terá um jurista para chamar de seu.

Fonte: Folha de SP (acesse aqui)

Autor: Lenio Luiz Streck

Publicado em: 08/02/2023