Militares perdem o pudor de ser golpistas

Infringindo a lei, coronéis e generais da ativa se manifestam contra Lula, questionam as eleições e atacam instituições.

“É relativamente fácil perceber os riscos que correm as Forças Armadas e a democracia quando se misturam militares, quartéis, política e governos”, resume o ex-oficial e mestre em ciências militares Marcelo Pimentel Jorge de Souza, em bom artigo no site Marco Zero.

Entre os tantos males que o bolsonarismo causou às instituições democráticas, a politização dos militares é um dos mais evidentes e perigosos. Vindo de uma classe que se orgulha de ter entre seus pilares a ordem, a hierarquia e a disciplina, é espantoso ver membros das Forças Armadas repetidamente descumprindo a lei que os proíbe de envolver-se com a política, sob a leniência de suas próprias instituições de controle, que deixam impunes tais atos. Pior, as violações vêm sobretudo de cima, cometidas por oficiais superiores como generais e coronéis da ativa e da reserva. Se “a palavra convence e o exemplo arrasta”, como costumam dizer os da caserna, o que esperar das baixas patentes?

É simbólico que os militares tenham ancorado sua imagem institucional à de um ex-capitão sem escrúpulos nem compromisso com a democracia, expulso do Exército por planejar atentados terroristas. O que indica que o problema não se resume a Jair Bolsonaro – sendo ele um sintoma, mas não a origem do desvirtuamento de uma instituição com fortes raízes autoritárias, que parecia estar se adaptando aos preceitos da Constituição democrática de 1988. Mas não estava.

“Esquerda revolucionária”

No momento em que quartéis têm suas portas ocupadas por manifestantes que imploram por um golpe, os altos oficiais, em vez de atuarem pela legalidade e em defesa da democracia, preferem emitir mensagens dúbias ou claramente favoráveis ao movimento ilegal.

Vice-presidente da República e senador eleito pelo Rio Grande do Sul, o general da reserva Hamilton Mourão aproveitou-se de mais uma farsa em torno das urnas eletrônicas (questionadas pelo PL junto ao TSE) para lançar uma nota “às instituições e ao povo brasileiro” em que chama de “justificada” a “polêmica” sobre as urnas e classifica como “ápice do autoritarismo” a reunião do ministro Alexandre de Moraes com comandantes das PMs, “ferindo de morte o pacto federativo”. No mesmo tom extremista, fala em “restabelecer” o Estado democrático de Direito e conclama a direita “combater a esquerda revolucionária” – linguajar que, não por acaso, remete ao anticomunismo usado para justificar o golpe militar de 1964 e a repressão ditatorial que duraria vinte anos.

Notas oficiais dos comandantes das três Forças e do general da reserva Eduardo Villas Bôas reforçam a intenção dos militares de atuarem como ente político e influenciarem na vida pública nacional. Quando era comandante do Exército, Villas Bôas publicou mensagem no Twitter ameaçando o Supremo Tribunal Federal (STF) com uma intervenção militar caso não fosse rejeitado o pedido de habeas corpus que poderia dar a Lula, então preso, o direito de se candidatar à Presidência. Na nota mais recente, defende o golpismo que questiona o resultado eleitoral.

General no palanque

Eduardo Pazuello também era general da ativa quando assumiu, “sem saber o que era o SUS”, “um Ministério da Saúde repleto de oficiais na reserva e na ativa – autorizados pelo Alto Comando do Exército. Oficiais do Exército exercendo atividades eminentemente políticas relacionadas a temas urgentes de saúde pública”, descreve Marcelo Pimentel. Não satisfeito, subiu num palanque e discursou em evento político de apoio a Jair Bolsonaro. A atitude estaria sujeita a punição pelo Estatuto dos Militares e pelo Regulamento Disciplinar do Exército, mas foi perdoada em processo colocado sob sigilo de 100 anos. “De forma isonômica, todo militar da ativa do Exército estaria liberado a participar de atos políticos em apoio ou desapoio a qualquer candidato, até mesmo usando a designação hierárquica de seu posto ou graduação”, compara Pimentel. Já na reserva, Pazuello abraçou de vez a política ao candidatar-se e eleger-se deputado federal, o segundo mais votado no Rio de Janeiro.

As eleições de 2022 comprovaram a onda política que invadiu os quartéis. “Centenas de oficiais do Exército na inatividade, dos milhares que se candidataram, utilizaram ou utilizam designações hierárquicas de seus postos – general, coronel, tenente-coronel, major, tenente etc. – em atividades político-partidárias, como as de propaganda eleitoral e, mesmo, como ‘nome na urna’. Outros, já eleitos, inserem seus postos junto a seus nomes, sequer indicando sua situação na inatividade”, comenta Pimentel.

“Não é raro que tais oficiais usem perfil de rede social ou publicações de propaganda eleitoral com dizeres do tipo ‘General Alfa’, ‘Deputado General Bravo’ ou ‘Deputado tenente-coronel Charlie’, e façam ampla utilização de símbolos militares, como o brado da Brigada de Infantaria Paraquedista – ‘Brasil acima de tudo’ – convertido em slogan eleitoral de uma chapa integrada por militares, e distintivos oficiais, como no caso do coronel secretário-executivo do Ministério da Saúde que usava os broches oficiais das tropas ‘comandos’ e ‘forças especiais’ do Exército Brasileiro em suas aparições públicas por ocasião de entrevistas sobre temas de saúde inerentes a seu cargo civil.”

“O Brasil foi roubado”

Em reportagem no Estado de S. Paulo, Marcelo Godoy expõe exemplos de como um coronel e três generais da ativa expressam opiniões políticas nas redes sociais, sem sofrer qualquer punição por isso.

Em seu perfil Twitter, o coronel Alberto Ono Horita postou diversas ofensas ao futuro comandante-em-chefe das Forças Armadas, o presidente eleito Lula – “ladrão”, “nine” (em referência ao dedo que perdeu em acidente de trabalho), “descondenado” –, a partidos de esquerda (“Dê para eles um pouco de capim. Quem fumar é do PSOL e quem comer é do PT”) e a ministros do Supremo, além de ataques ao sistema eleitoral. Logo após o segundo turno, compartilhou a hashtag #BrazilWasStolen (“O Brasil foi roubado”).

Sem justificativa, Marcelo Godoy poupa o nome dos três generais que vêm se manifestando politicamente nas redes. Dois deles postaram críticas à suposta “censura sob a qual o Brasil vive”, em referência às punições impostas pelo TSE a perfis e canais que espalham desinformação, e à Jovem Pan por ofensas a Lula. O terceiro general foi além, compartilhando postagens contra o PT e republicando a nota de Villas Bôas em apoio aos golpistas acampados em frente aos quartéis.

Com força de lei (nº 6.880/1980), o Estatuto dos Militares veda a participação e a expressão política dos membros da Força. Em seu artigo 42, considera “a violação dos preceitos da ética militar (…) tão mais grave quanto mais elevado for o grau hierárquico de quem a cometer”.

Fonte: Marco Zero (acesse aqui)

Autor: Marcelo Pimentel Jorge de Souza

Publicado em: 21/11/2022