Capilarizado e com mais de 6 mil homens, sistema de arapongas é avesso à transparência e, no mínimo, incompetente.
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Na entrevista que concedeu à jornalista Natuza Nery da TV Globonews em 18 de janeiro, Lula manifestou seu estranhamento sobre o papel da inteligência militar no país: “Nós temos inteligência do GSI, da Abin, do Exército, da Marinha, da Aeronáutica, ou seja, a verdade é que nenhuma dessas inteligências serviu para avisar ao presidente da República que poderia ter acontecido isso”, referindo-se aos ataques de 8 de janeiro.
Tudo indica que a Abin (Agência Brasileira de Inteligência), submetida ao GSI (Gabinete de Segurança Institucional), avisou sim aos setores competentes sobre o que poderia acontecer. Mas, de resto, o presidente tocou numa ferida: há poucos setores da vida nacional menos conhecidos e falados do que a inteligência militar. E ela vem falhando miseravelmente quanto aos riscos de golpe no país.
Vexame completo
Então comandante militar do Planalto, o general Gustavo Henrique Dutra de Menezes afirmou em ofício ao MPM (Ministério Público Militar) que a ausência de reforço na segurança para o dia 8 de janeiro foi decidida a partir de análise de risco feita pelo GSI, que previa um cenário de “normalidade”.
O CMP (Comando Militar do Planalto) é uma enorme e importante organização militar, um dos oito chamados Comandos de Área do Exército no país. É formado por outros quatro grandes comandos, incluindo a 11ª Região Militar e o Comando de Apoio Logístico, localizados em Brasília. O reconhecimento de que um comandante com tais responsabilidades se valeu apenas de uma análise do GSI para uma decisão tão grave quanto a proteção do Palácio do Planalto é, na hipótese mais otimista, um vexame completo da inteligência militar.
Ninguém da inteligência sabia que havia centenas de ônibus com milhares de pessoas insufladas por discurso de golpe a caminho de Brasília? Ou sabiam e optaram por deixar acontecer?
O sistema já havia se mostrado incompetente em dezembro, quando foi desbaratado um plano de atentado terrorista colocado em prática por bolsonaristas. A bomba não explodiu por uma razão prosaica: o motorista do caminhão notou um pacote estranho no seu veículo e chamou a polícia.
[Alvo de desconfiança do novo governo também por ter impedido a PM de Brasília de desocupar o acampamento golpista, o general Dutra foi afastado do cargo no dia 16 de fevereiro. Sete dos oito Comandos Militares tiveram mudanças de chefia desde a posse de Lula.]
Arapongas nas sombras
Há três grandes organismos de inteligência militar, um para cada Força: o CIE (Centro de Inteligência do Exército), o CIM (Centro de Inteligência da Marinha) e o CIAER (Centro de Inteligência da Aeronáutica). Há escolas específicas para formação dos militares que atuam na área.
Com uma capilaridade imensa, a inteligência militar se espalha como um polvo por todas as unidades militares de todo o país. Os centros se vinculam a uma extensa rede de siglas em todos os cantos das três Forças e também do Ministério da Defesa, onde opera um certo Sine (Sistema de Inteligência de Defesa), que “integra as ações de planejamento e execução da Atividade de Inteligência de Defesa”.
Não se sabe quantos militares atuam em cada um desses centros e nas unidades militares, mas uma fonte militar certa vez me disse que o número deve passar de 6 mil. Se correto, isso representa dez vezes o total de oficiais de inteligência da Abin. Um Exército de arapongas fazendo ninguém sabe o quê.
Suas atividades – assuntos de interesse, prioridades, alvos e relatórios – não são conhecidos porque se valem do manto do sigilo e escapam do escrutínio da cidadania. Aqui e ali há apenas ecos de suas capacidades operacionais. Há dois anos, por exemplo, durante o governo Bolsonaro, soube-se que o centro do Exército havia adquirido 15 drones com alcance de até 7 km e câmeras de alta resolução, 31 câmeras digitais para fotos e vídeos e “lentes de longo alcance”. O que os militares precisam ou querem tanto filmar é uma incógnita.
Os centros de inteligência têm a atribuição de prestar “assistência direta e imediata” aos comandantes das Forças. Que nenhum deles tenha alertado sobre o Oito de Janeiro é no mínimo um espanto.
Comissão deserta
Supostamente os centros de inteligência militar só prestam contas a uma comissão do Congresso chamada CCAI (Comissão Mista de Controle de Atividades de Inteligência). É um órgão de expressão política quase que nula e totalmente indiferente à transparência: de 2017 para cá, fez apenas duas audiências públicas. O poder civil abre mão de exercer seu controle sobre os militares. Ao longo de dois anos, tentei entrevistar os presidentes ou vice-presidentes desta comissão – nunca fui recebido. Hoje todos os cargos da comissão estão vagos, à espera da indicação dos líderes partidários para ser instalada na nova legislatura.
Herdeiros da ditadura
Os três centros de inteligência militar mudaram de nome desde o fim da ditadura militar. Nos anos de chumbo, ficaram conhecidos por alguns dos atos mais violentos e covardes da repressão à oposição política.
Em seu relatório final, a Comissão Nacional da Verdade tratou do conhecido centro de tortura do Cenimar da Marinha (renomeado CIM em 2012), que ficava na Base Naval de Ilha das Flores, em São Gonçalo (RJ). Segundo a CNV, cerca de 200 pessoas ficaram presas no local de 1969 a 1971. Ex-presos “relataram o uso de ‘pau de arara’, choques, ‘telefone’ (tapa violento com as mãos abertas simultaneamente nas orelhas da vítima) e palmatória. As mulheres relataram também o uso de toalhas molhadas, abusos e ameaças sexuais”. A CNV considerou o CIE, então chamado de Centro de Informações do Exército, de “o principal órgão de repressão das Forças Armadas”.
Hoje os centros de inteligência não torturam nem matam – ou pelo menos disso não ouvimos falar. De que forma estão operando nas sombras contra a democracia?
Parlamentares querem criar uma CPI sobre a tentativa de golpe. Ela faria um bom serviço se avançasse sobre a inteligência militar para saber exatamente o que ela faz (e o que não faz) e como produziu um verdadeiro desastre, na melhor das hipóteses, ou teve papel de cúmplice, no pior cenário, no maior ataque à democracia desde o fim da ditadura.
Fonte: Agência Pública (acesse aqui)
Autor: Rubens Valente
Publicado em: 14/02/2023