Daniel M. Huertas – Outras Palavras – 11/11/22
Jornalista, geógrafo e professor da Unifesp, Daniel M. Huertas propõe alguns eixos essenciais para a reflexão e ação diante do maior desafio que a democracia brasileira enfrenta desde a ditadura militar: “o espectro sinistro do ‘bolsonarismo’”.
Polícia na política
Cresce a chamada “bancada da bala” (composta por militares, policiais e outras agentes ou ex-agentes das forças de segurança): serão mais de cem representantes na nova legislatura, entre deputados estaduais (57), federais (44) e senadores (4).
Entre eleitos, não eleitos e eleitores, fica a nebulosa questão a ser elucidada: qual é, hoje, a dimensão do ativismo político entre policiais e militares?
O fenômeno é ainda mais grave quando se constata que as forças de segurança não têm uma formação ou mentalidade democrática. As Polícias Militares foram modeladas no período ditatorial e não houve sua devida adequação ao trabalho em uma sociedade democrática. Faltam noções básicas de direitos humanos e mesmo de investigação criminal, para não falar de conteúdos relativos à mediação de conflitos.
Mais armas
Parcela considerável da sociedade civil defende as políticas armamentistas implementadas por Bolsonaro (30% consideram que mais armas aumentam a segurança das pessoas).
Chantagem militar
Desde 2000, com a criação do Ministério da Defesa, as Forças Armadas são fonte de sucessivas e crescentes crises. Políticas democráticas como a abertura de arquivos da ditadura, a Comissão Nacional da Verdade e a revisão da Lei da Anistia (barrada no STF) inflamaram a insatisfação militar.
“Na sociedade civil, os defensores do golpe de 1964 e de uma nova quartelada em pleno século XXI assombram o país, de forma recorrente desde as eleições de 2018. O antropólogo Celso Castro admite que existe um déficit de conhecimento sobre o cotidiano da caserna, ‘daí compreender-se pouco o funcionamento dessas instituições’”.
Vivemos sob chantagem militar. A pauta é simplesmente interditada em discussões partidárias e no Congresso, e isso foi uma brecha para o bolsonarismo crescer.
O ogro agro
É escancarada a rejeição dos agentes do agronegócio a Lula e ao PT. No primeiro turno, Bolsonaro venceu em 77 dos 100 municípios mais ricos do agronegócio.
Os produtores “se sentem perseguidos, ameaçados com invasões do MST e atacados como responsáveis pelo desmatamento, pelo latifúndio improdutivo e pelo uso de defensivos”.
Do ponto de vista estrutural, o poder no Brasil guarda íntima correlação com a propriedade da terra, e uma mudança radical implicaria na eliminação do latifúndio e da especulação fundiária (a terra como reserva de valor).
Mas a temática da reforma agrária precisa estar mais relacionada à realidade brasileira do século XXI. Grande parte dos problemas sociais também se deslocou para as cidades.
A religião do individualismo
Desde a década de 1990, as igrejas evangélicas neopentecostais mudaram o caráter da religiosidade no Brasil. A articulação midiática dos cultos e atividades na tela da tevê acolheu parte dos vitimados pelo êxodo rural e pela marginalização urbana. Eles redescobrem a autoestima e o senso da dignidade, as sob a ética individualista do mundo atual.
A Teologia da Prosperidade nas comunidades evangélicas é alavancada por cursos de alfabetização, aprendizado de profissões, oferta de empregos e possibilidade de desenvolver carreira eclesiástica.
Para o historiador Leandro Karnal, “evangélicos não criam, apenas reforçam um reacionarismo difuso”. Acreditar que votam em quem pastores e bispos mandam “subestima a capacidade crítica dos evangélicos e omite a mudança na composição social do grupo”.
Bancada da Bíblia
O resultado é o reforço da bancada evangélica no Congresso: dos 177 candidatos a deputado federal, 109 foram eleitos, taxa superior a 60%. Nikolas Ferreira (PL-MG), o deputado mais votado do Brasil, integra a Comunidade Evangélica Graça e Paz.
“Vai ter um grupo mais coeso agora, porque os novos deputados eleitos é gente mais aguerrida. Isso vai ficar muito bom para a bancada”, declarou o deputado Gilberto Nascimento (PSC-SP), um dos principais articuladores do movimento e reeleito para o seu quarto mandato.
Violência e moralismo
O diretor do Observatório Evangélico, Vinicius do Valle, enxerga um ambiente bastante violento no universo das igrejas, com “consequências sérias, dentro e fora dos templos”. O desejo de aniquilamento da diferença, “mesmo entre aqueles que comungam da mesma fé”, foi incrustado nas igrejas pelo bolsonarismo.
As pautas morais e religiosas, situadas “no terreno das crenças e das paixões, e menos conectadas à materialidade”, são “mais suscetíveis à dinâmica do marketing político agressivo e das fake news”.
Dinheiro acima de tudo
Mais uma grande transformação no país desde os anos 1990 foi a melhoria de renda da população, e com ela o espalhamento de uma ideologia consumista – com tudo o que ela carrega: “a criação inesgotável de desejos materiais, a ideia de felicidade, a busca por status e afirmação social e altas dosagens de entretenimento entorpecente”, atingindo em cheio todos os extratos da sociedade, sobretudo os mais baixos, “que até então apenas de forma marginal faziam parte do mercado consumidor e, na sua estrutura psíquica e cultural, não tinham no consumo um valor em si de grande relevância para o seu cotidiano. Em suma, o dinheiro transformou-se no grande mediador das relações sociais em praticamente todas as porções do território e em todas as classes sociais”.
“Junto com o dinheiro e o consumo vêm o individualismo, a ganância e a ambição, um pacote completo embalado por milhares de peças publicitárias e pela ideia fortemente difundida da meritocracia e do empreendedorismo, diametralmente oposta aos valores humanistas de alteridade e solidariedade”.
Cada um por si
Nas palavras do geógrafo Milton Santos, o consumo é “o grande fundamentalismo do nosso tempo, porque alcança e envolve toda gente. (…) Consumismo e competitividade levam ao emagrecimento moral e intelectual da pessoa, à redução da personalidade e da visão do mundo, convidando, também, a esquecer a oposição fundamental entre a figura do consumidor e a figura do cidadão”.
O medo da perda das condições materiais é elemento paralisante e reacionário. A questão da segurança pública ajuda a reforçar esse aspecto com narrativas e imagens veiculadas incessantemente por programas de televisão sensacionalistas. A escassez, em outros tempos um forte elemento a favor das revoluções sociais, hoje parece estar mais inclinada ao reacionarismo.
Talvez a essência do brasileiro tenha se tornado mais individualista e menos espontânea, cada vez mais enquadrada no “reino do cálculo e da competitividade”.
Esse fenômeno está gerando capilaridade entre as camadas mais pobres e se propaga pelo celular, na velocidade e ferocidade da internet e das redes sociais.
Ódio e barbárie
Agora caiu a máscara. Ficou explícita a aversão que as forças conservadoras e reacionárias replicam em torno das figuras do negro, indígena, pardo, favelado e suburbano, tidas como de segunda categoria que atravancam o progresso do país — e, mais ainda, brecam o desejo latente da “europeização” da sociedade brasileira. Sempre foi assim, mas, nos marcos civilizatórios do atual contexto do mundo, deveria ser algo inadmissível.
Vivemos processo gradativo, perverso e crescente de naturalização da desigualdade social no Brasil e de tentativa de criminalização de qualquer tipo de movimento e/ou organização social daqueles que estão na base inferior da sociedade brasileira.
Este espectro sinistro conhecido como bolsonarismo plantou raízes e se tornou, por incrível que pareça, uma peça extremamente relevante no cenário político brasileiro.
E agora, esquerda?
A esquerda precisa reavaliar a sua compreensão sobre a realidade brasileira. Isso não significa necessariamente abortar velhos conceitos e metodologias. Afinal, as permanências perversas do constructo social brasileiro (como o racismo estrutural e o latifúndio) estão mais vivas do que nunca e os inimigos de sempre continuaram (e continuarão) à espreita, no aguardo de uma janela de oportunidade para a cooptação de partidários e implementação de uma agenda com ações extremamente reacionárias maximizadas pela velocidade e capilaridade das redes sociais. As tubulações de esgoto do tecido social deste país nunca estiveram tão entupidas.
Fonte: Outras Palavras (acesse aqui)
Autor: Daniel M. Huertas
Publicado em: 11/11/2022