“OS MILITARES VÃO CONTINUAR TENDO FORÇA POLÍTICA ENQUANTO OS CIVIS TIVEREM MEDO DE EXERCER O COMANDO SOBRE AS FORÇAS ARMADAS.”

Juliano Cortinhas – The Intercept Brasil – 02/12/22

“Os militares precisam ser lembrados de que saíram do lugar devido. Se deixarmos tudo como está, eles vão continuar fora do lugar”, afirma Juliano Cortinhas, professor do Instituto de Relações Internacionais da UnB, coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas em Segurança Internacional e pesquisador de políticas de Defesa. Ele também trabalhou no Ministério da Defesa entre 2013 e 2016, no governo de Dilma Rousseff.

GT de Transição

Cortinhas lamenta que a equipe de transição do governo eleito tenha desistido de criar um Grupo de Trabalho para discutir políticas de Defesa, o que foi feito em todas as outras áreas: “A Defesa é uma política pública do governo federal como tantas outras – Saúde, Educação, Cultura etc. É um tema que tem que ser discutido com a sociedade. As Forças Armadas são executoras, mas não têm o papel de definir a política pública de Defesa. Isso cabe aos governantes eleitos e à sociedade”.

Militares e a política

“O militar, desde o início de sua formação, é ensinado a trabalhar hierarquicamente: ou ele está numa posição de comando, ou está obedecendo alguém. Ele nunca está em posição de criticar autoridades, de contrapor ordens.

Já a política, numa democracia, é fundamentalmente o debate de ideias. E, quanto mais amplo ele for, mais transparente e adequada é a construção de uma política pública. Não existe ordem: é pelo debate que parte de um amplo leque de possibilidade para que uma autoridade democrática chegue  a suas conclusões.

Segundo ponto: os militares detêm as armas. Já a política não se faz com armas, mas com ideias. Então, quando alguém que tem atrás de si as armas fala em redes sociais – como Hamilton Mourão vem fazendo – ou aos microfones da imprensa que o processo eleitoral foi ilegítimo, ilegal, temos claramente uma ameaça.”

Imprensa erra

“Vejo um erro profundo, cometido diariamente pela imprensa, em ouvir os comandantes das forças ou qualquer militar sobre a constituição do GT de Defesa ou do futuro governo. Militar não tem que dar opinião política a não ser quando for consultado pela cadeia de comando. Ele não pode falar à imprensa, que não deveria ouvi-los. As Forças Armadas não devem ter voz alguma no ambiente político.”

Ilegalidade permitida

“Existe uma ilegalidade acontecendo diariamente no Brasil. Há uma lei específica, que regula a carreira e a atividade dos militares, e ela diz que quem vai para a reserva não pode mais usar o posto para se posicionar. Não pode falar mais como ‘general’ Mourão, ‘general’ Heleno, ‘general’ Pazuello, ‘general’ Villas Bôas, entre tantos outros. Isso é uma ilicitude, que deveria automaticamente receber punição.

É uma forma de intimidação, de trazer as Forças Armadas para avalizar a opinião que eles estão dando. Ilegalmente. Isso deveria gerar um processo administrativo nas Forças Armadas. Só que não acontece, porque elas só punem gente de esquerda”.

“Justiça” militar

“As punições são extremamente necessárias. Mas não será o poder Executivo a fazer isso. Cabe ao Judiciário. E aí, a gente tem outro problema: os militares têm um sistema de proteção enorme e dele faz parte um poder Judiciário próprio, a justiça militar. O que é um absurdo, porque o Brasil não entra em guerras desde 1870, no Paraguai. Então, não cabe haver uma justiça militar, porque os crimes que os militares cometem são na imensa maioria crimes comuns. Com isso, resta a possibilidade de punições administrativas, a partir de processos administrativos. E aí temos a decisão atual do governo de transição sobre a Defesa, que manda um sinal ruim”.

Reestruturar a Defesa

“As nossas Forças Armadas estão estruturadas ideologicamente, hoje. E tirar elas desse comprometimento ideológico [com a direita] requer tempo, não vai se fazer da noite para o dia.

A reestruturação do Ministério da Defesa precisa se dar a partir de uma definição de funções das Forças Armadas, com base no que as democracias liberais fazem ao redor do mundo. Temos que seguir o exemplo de França, Reino Unido, Estados Unidos, dos países da OTAN em geral, em que as Forças Armadas operam a Defesa mas em que o ministério comandado por civis, por atores políticos, e não militares, pensa politicamente e gerencia a Defesa. Os civis, e não os militares, exercem a política – a não ser que os militares sejam eleitos para cargos políticos. Mas, para isso, precisam, além de estar na reserva, concorrer como indivíduos.

Mourão só foi candidato [a vice-presidente, em 2018, e a senador, em 2022] porque é general, e não porque é um ator político relevante. Heleno só está no cargo de ministro porque é militar, e não porque é político. Então temos um erro já no início do processo.”

Civis no comando

“Precisamos consolidar uma carreira civil no Ministério da Defesa, que hoje não existe. Por consequência, hoje a pasta é totalmente ocupada por militares, mesmo sendo um órgão político, e não militar. Precisamos de civis, aprovados em concurso público, dedicados a pensar a longo prazo a política de Defesa, estabelecer prioridades. Por exemplo: diante da configuração do nosso território, o que é mais importante: termos um submarino de propulsão nuclear ou os blindados em que o Exército anunciou que irá gastar bilhões de reais? Se o ministério for ocupado por militares, os do Exército vão defender sua força, assim como os da Marinha. Quem pode olhar o que é melhor para o país é um civil.

O militar típico brasileiro, por sua formação, pensa primeiro na própria carreira, e depois, em sua força, pois dela depende a carreira. Ele passa a vida inteira dentro da própria força, só vai lidar com militares de outras forças quando ele chegar ao generalato, quando eventualmente for servir no Ministério da Defesa.”

Papel dos militares

“As Forças Armadas deveriam ser retiradas de qualquer atuação doméstica, seja apoio em segurança pública, seja levar água para o Nordeste colaborando na transposição do rio São Francisco, policiar as zonas de fronteira. A gente precisa das Forças Armadas sem quaisquer atribuições dentro do nosso território. Elas só atuam aqui para se preparar para, eventualmente, atuarem fora dele.

Se não existir nenhum general de quatro estrelas que queira fazer isso, daí a gente precisa reformar as Forças Armadas, reconstruir todo o processo de formação dos militares brasileiros, que começa pela educação. E tudo isso precisa ser construído de cima pra baixo. Porque a hierarquia é o princípio basilar das Forças Armadas.

Elas precisam receber ordens dos civis. E nós, como civis, não temos dado ordens. Temos deixado-as autônomas. As Forças Armadas brasileiras gozam de autonomia excessiva, e isso é um erro dos civis. Os militares não estão recebendo ordens claras e delimitadas apenas ao seu papel constitucional. Existe um medo dos militares entre os civis, e isso já demonstra que eles têm força política. E vão continuar tendo – e exercendo papéis que não são delas – enquanto os civis tiverem medo de exercer o comando sobre as Forças Armadas.”

Fonte: The Intercept Brasil (acesse aqui)

Autor: Rafael Moro Martins

Publicado em: 02/12/2022