Texto reivindica militares como guardiões da democracia e representantes do povo, reforçando doutrina do general Villas Bôas.
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Para Igor Gielow, a nota assinada pelos comandantes das três Forças – com críticas veladas ao Judiciário e cobranças ao Congresso – “representa um sinal claro do estertor da chamada doutrina Villas Bôas”.
Mais influente comandante do Exército desde a redemocratização, o general Eduardo Villas Bôas (2015-2019) conduziu os militares a um novo e perigoso protagonismo político no país. No período turbulento que levou ao impeachment de Dilma Rousseff, envolveu-se em conspirações e disseminação de fake news em torno de um suposto golpe de Estado planejado pelo PT, como narra o recém-lançado livro Poder camuflado: Os militares e a política, do fim da ditadura à aliança com Bolsonaro, de Fabio Victor. Em 2018, Villas Bôas assinou um tuíte elaborado pelo Alto Comando do Exército chantageando o Supremo Tribunal Federal (STF) para que não concedesse habeas corpus a Lula, então preso. Eleito, o ex-capitão Jair Bolsonaro (tendo um general da reserva de vice) o agradeceu publicamente: “General Villas Bôas, o que já conversamos morrerá entre nós. O senhor é um dos responsáveis por eu estar aqui”. Seu governo concedeu milhares de cargos a oficiais da ativa e da reserva, inclusive o próprio Villas Bôas, nomeado ainda em janeiro de 2019 assessor especial do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) e exonerado apenas em 2022, quando a revista Piauí descobriu que era um funcionário-fantasma, recebendo sem dar expediente.
Com a derrota de Bolsonaro na tentativa de se reeleger e o surgimento do movimento golpista que, duas semanas após as eleições, se aglomera em frente a quartéis pedindo uma “intervenção” das Forças Armadas, os comandantes militares decidem vocalizar, em nota oficial, que não pretendem abrir mão de um papel político a que não tem direito.
Primor de ambiguidade
“O texto atual é um primor de ambiguidade, por insinuar críticas sem ter coragem de assumi-las, ciente de que isso representaria um golpismo inaceitável. Foi lido por ministros do Supremo como uma provocação a mais numa semana tensa, mas a ideia geral é evitar a escalada.
Os magistrados já se haviam mostrado agastados com a nota emitida pela Defesa na quinta (9), quando o ministro Paulo Sérgio Oliveira insistiu que seu relatório descartando fraudes no sistema eletrônico de votação não dizia que elas não poderiam ocorrer. Ao jogar biscoitos para o bolsonarismo, foi qualificado como uma figura que será muito menor ao sair do cargo”.
Sujeito oculto: Lula
“Há também um sujeito oculto no texto, Lula. Na véspera, o presidente eleito deixou o prudente silêncio ante a questão da Defesa e fez um discurso em que criticou Bolsonaro por instrumentalizar as Forças. Exigiu desculpas aos militares, no que parecia uma esperta sinalização ao serviço ativo.
O problema é que fardados não gostam de se ver colocados como manipuláveis. Mais: pela tradição da República, fundada em um golpe militar e marcada por eles ao longo de sua história, as Forças Armadas se arrogam um papel de consciência do ‘povo’, aspas mandatórias”.
Conversa com tuíte infame
“A nota desta sexta conversa com o infame tuíte de Villas Bôas admoestando o Supremo a não conceder habeas corpus que teria livrado Lula de 580 dias de cadeia, em 2018. Ambos os textos sugerem uma mediação única feita por militares entre o sentimento da população e os Poderes”.
“O potencial de disrupção nada tem de desprezível, e tudo o que Lula não precisa é de outra frente de batalha. (…) Nunca é demais lembrar a má vontade dos fardados com Lula e o petismo, vistos de forma geral como encarnação da corrupção.
Como receitaram dois políticos com amplo trânsito entre os fardados ao analisar o cenário, o melhor que o presidente tem a fazer é lidar com esse estertor da era Villas Bôas de forma objetiva: abrindo uma interlocução oficial, dentro da transição, e escolhendo sábia e rapidamente a nova cúpula militar. Fila que anda não gera queixa”.
Fonte: Folha de SP (acesse aqui)
Autor: Igor Gielow
Publicado em: 11/11/2022