Vladimir Safatle – Piauí – 01/03/23
O filósofo Vladimir Safatle propõe uma análise estética do bolsonarismo, interpretado como um ataque ao cânone modernista que tentou no século XX construir a utopia de uma só nação – insurreição simbolizada pela facada de um manifestante no quadro As Mulatas, de Di Cavalcanti, no Palácio do Planalto.
“As ações históricas mais expressivas são feitas por quem sequer tem ideia do que está fazendo. Seria fácil dizer que se trata de simples vandalismo, mas a verdade é que conflitos sociais reais acabam sempre por encontrar suas imagens e significações, a despeito da intenção dos seus agentes. Como costumava dizer Jacques Lacan, há momentos em que as estruturas descem às ruas.”
O pós 8 de janeiro não representa arrefecimento deste movimento, pelo contrário: a revolta verde-amarela segue mobilizadora, imbuída de profundo significado estético-político, e promete novas irrupções.
Abnegação, engajamento e sacrifício
É possível olhar para tudo que ocorreu em Brasília em 8 de janeiro passado e agir como se fosse a expressão irracional da violência das massas. Mas o que aconteceu – e provavelmente se repetirá mais à frente – não foi de fato “irracional”. Foi um acontecimento várias vezes previsto e anunciado.
O desejo de não enxergar é tão forte que, depois das imagens muito vistas do 8 de janeiro, seguiram-se imagens não vistas, como a do senhor que ateou fogo no próprio corpo gritando palavras de ordem contra o STF e o ministro Alexandre de Moraes, no dia 31 de janeiro, e morreu dois dias depois. A maior parte da imprensa decidiu não noticiar o caso, reforçando o desconhecimento da opinião pública a respeito do momento em que nos encontramos, marcado pela força de engajamento e sacrifício da extrema direita.
Nesses últimos meses, uma parte do país foi pega de surpresa pela insistência, a abnegação e o entusiasmo com que pessoas de extrema direita se mobilizaram. Achar que essa dinâmica foi rompida apenas porque agora se fez algumas prisões é simplesmente tomar nossos desejos por realidade. Vimos algo muito parecido em 2021, na sequência dos eventos ocorridos em Sete de Setembro, quando Bolsonaro fez ataques ao STF e estimulou discursos incendiários: ocorreram prisões e declarações de que o então presidente havia ultrapassado os limites, desarticulando com isso a sua base popular. No entanto o que ocorreu foi outra coisa: a mobilização da extrema direita não retraiu, não arrefeceu, não acabou. Ou seja, não se deve agora descartar a hipótese de que o Brasil se tornou um laboratório de uma nova fase da extrema direita mundial: a fase insurrecional.
A extrema direita revolucionária
Significa que a extrema direita mundial tenderá cada vez mais a operar como força ofensiva anti-institucional de longa duração, que pode se expressar em grandes mobilizações populares, em ações diretas, em formas de recusa explícita das autoridades constituídas. Ou seja, toda uma gramática de luta que até pouco tempo atrás caracterizava a esquerda revolucionária agora está migrando para a extrema direita, como se estivéssemos em um mundo invertido.
Explicações deficitárias
Melhor aceitar isso do que continuar com “explicações deficitárias” a respeito do bolsonarismo, como se faz à exaustão nos últimos anos. Explicações deficitárias são aquelas que colocam a causa dos fenômenos em pretensas deficiências dos agentes, como dizer que o bolsonarismo é resultado do ressentimento (deficiência psicológica), do obscurantismo e das fake news (deficiências cognitivas), do ódio (deficiência moral). Explicações dessa natureza servem mais para corroborar a crença do analista em sua pretensa superioridade moral e intelectual do que para auxiliar na compreensão efetiva de um fenômeno sócio-político de inegável complexidade.
Não deixa de ser significativo que a extrema direita brasileira descreva a esquerda recorrendo aos mesmos termos: obscurantista, ideologicamente cega, ressentida e marcada pelo ódio. O que mostra o caráter eminentemente “estratégico” desses conceitos analíticos: eles são peças de um embate retórico e no máximo descrevem efeitos, não causas.
Motivações positivas
Ninguém passa meses tomando chuva diante de um quartel movido pelo ressentimento, mas porque acredita fazer parte de um movimento real de ruptura e transformação que irá “passar o país a limpo” e reconstruir a história brasileira, o que exige sacrifício. Há um sistema positivo de motivações movendo essas pessoas que precisa ser analisado enquanto tal.
Destruir as representações do poder
Em todo o processo de insurreição popular ocorre a afirmação de que o povo representado pelo poder não é o povo real. Para os insurgentes, o povo real é aquele que destrói as representações do poder.
Por isso, nunca houve insurreição popular sem derrubada de estátuas, profanação de espaços públicos, degradação de patrimônio histórico e artístico. O poder público não é apenas um conjunto de aparatos de controle e legislação. É um conjunto de sistemas estéticos de apresentação do povo. É a gestão contínua de toda uma série de hinos, canções populares, espaços arquitetônicos, pinturas e imagens, poemas, romances que visam não exatamente a representar um povo mas a construí-lo. E não há país melhor para demonstrar como isso funciona do que o Brasil.
Destruição libertadora?
É possível imaginar que algumas pessoas tenham dito: “Toda destruição popular de signos do poder tem algo de libertador. Não é possível criticar quem fez o que fez em Brasília em 8 de janeiro”. Mas essa posição resulta de um equívoco duplo. O primeiro consiste em acreditar que toda a destruição é igual. O segundo, e ainda pior, que toda a construção também é igual.
De certa forma, o Brasil moderno é uma ideia artística. A construção nacional tem entre seus eixos fundamentais o uso da modernização estética como força de redefinição do espaço, do tempo e do território. O Brasil entrou para a história como o único país do mundo, junto com a União Soviética, onde o modernismo se tornou um verdadeiro projeto de Estado. O que levou o arquiteto Lúcio Costa, que fez o Plano Piloto de Brasília, a anunciar que com a construção da capital estava surgindo “uma nova era política na qual a arte retomaria mais uma vez o controle da técnica”.
Uma das consequências de uma revolução popular é a crença de que podem emergir novas dinâmicas de constituição do povo, possibilitando a modificação estrutural da sensibilidade, da imaginação. Uma sociedade liberada da reprodução material de tradições e mitos fundadores pode mobilizar a experiência estética como solo de criação social de novas formas. Algo dessa crença orientou o desenvolvimento do modernismo em certos países de constituição nacional tardia, como o Brasil. Animado por um processo que não foi uma revolução social mas uma revolução pelo alto, a partir de 1930 o Brasil utilizou o horizonte utópico do modernismo para impulsionar a formação de um Estado nacional de uma modernização ambígua.
“Criar um povo que falta”
O adjetivo “ambígua” não foi usado por acaso. Poder algum se associa à força construtiva de experiências estéticas autônomas sem que isso traga acordos instáveis e difíceis de controlar. O modernismo brasileiro não foi uma emulação do Estado. Ele se realizou como uma estética da conciliação nacional em que a aspiração vanguardista de “criar um povo que falta” se encontra com os desejos de modernização conservadora e de progresso do Estado populista brasileiro a partir da Era Vargas. Para que essa conciliação funcionasse foram necessários muitos apagamentos e silenciamentos. Pois, para criar um povo que falta, se faz necessário negar um povo que já existe, é preciso jogar na invisibilidade esse povo que não se adequa à geometria estrelar e ampliação do vão livre arquitetônico que o modernismo brasileiro consagrou.
Por outro lado, essa modernização – e aí está seu traço ambíguo – exige que não nos apoiemos mais no solo, no território, na terra, na tradição, nas formas já constituídas de vida. Ela pede um empuxo de criação e invenção que nenhum poder consegue controlar muito bem. Imbuído desse espírito modernista brasileiro, Celso Furtado falava de uma improvável “fantasia organizada”, uma das mais belas expressões para se referir à utopia estética nacional. Algo não muito distante do que disse Lúcio Costa, ao declarar que com Brasília havia construído uma cidade capaz de aliar “trabalho ordenado e devaneio”. De fato, o processo é contraditório, mas essa contradição é real. Triste o tempo em que o pensamento crítico não conhece mais contradições reais.
Irreconciliação ativa
A pessoa que esfaqueou a tela de Di Cavalcanti dentro do Palácio do Planalto agiu contra os dois lados da contradição. Ela recusou a conciliação prometida pela representação oficial do povo, dizendo com isso que há uma irreconciliação ativa, que esse não é o povo real. Mas não parou aí seu gesto. Incluiu ainda uma segunda intenção, que consiste em também não aceitar o empuxo de criação e ruptura que a construção modernista do povo expressou no Brasil. Esse segundo gesto inconsciente, mas brutalmente real por ser inconsciente, nos lembra do primeiro equívoco que mencionei antes: o de acreditar que toda destruição é igual. Há destruições que são a condição para se criar o que ainda não foi visto. E há destruições que apenas negam aquilo que ainda guarda a força silenciosa de criação de novas configurações sociais. Nesse caso, por meio da negação busca operar uma restauração.
Embate centenário
Esse segundo gesto do agressor da tela de Di Cavalcanti só pode ser compreendido em sua real intenção se entendermos que o bolsonarismo não é simplesmente “a destruição da cultura”. É a encarnação de um embate centenário que atravessa a história do Brasil e consiste em tentar destituir um projeto de construção estética do povo em nome de outro, pretensamente mais popular e que não seja a expressão das “elites culturais globalistas”. O movimento será sempre este: o de construir esteticamente um povo, mas destruindo o outro. No mesmo espaço.
Arte fascista
Quando Bolsonaro deixou os palácios da Alvorada e do Planalto, não foram poucos os que fizeram troça das “obras de arte” de gosto duvidoso recebidas pelo ex-presidente e empacotadas para sua mudança, como uma motocicleta esculpida em madeira, esculturas feitas de cartuchos de balas e quadros em que ele aparece ao lado de Jesus Cristo. As redes sociais se deleitaram com tamanha miséria estética. Eram trabalhos de cunho artesanal ou feitos por autodidatas que celebravam o próprio Bolsonaro. No entanto, qualquer pessoa familiarizada com o integralismo brasileiro não deixaria de reconhecer neles elementos estéticos do movimento, com sua mescla de formas populares, “poesia ingênua e sentimental” e referências religiosas e patrióticas.
De fato o integralismo – ou seja, o fascismo brasileiro – foi inicialmente uma outra construção estética do povo, contraposta à do projeto modernista que predominou. O fundador do integralismo, Plínio Salgado, além de exercer a atividade política, foi escritor e participou da Semana de Arte Moderna de 22 e dos embates internos do modernismo brasileiro, tendo redigido os seus próprios manifestos artísticos, como Movimento Verde e Amarelo de 1926. A estética integralista celebrou outra forma de conciliação nacional, ainda mais violenta – e muito menos ambígua –, entre a acumulação capitalista primitiva, de cunho extrativista, a religião, a tradição e o extermínio indígena.
Violência colonial e extrativista
Como é um modernismo cortado de sua raiz de ruptura formal, mas que preserva seu desejo de autonomia do presente, o integralismo adequa a tradição às exigências de desenvolvimento predatório capitalista, que não verte lágrimas por aquilo que destrói. Ele é a expressão de um povo que estaria conciliado com a violência do progresso colonial e extrativista, do empreendedorismo capitalista, com a ordem atual da sensibilidade, que não questiona o que socialmente aparece como “natural”, as hierarquias “naturalmente” dadas (como as que constituem a família burguesa e o poder teológico-político). Muitos desses elementos serão atualizados nessa “estética de produção agrária exportadora” que sela a associação entre a indústria cultural brasileira e o bolsonarismo. Basta lembrar, por exemplo, a dicotomia constituída por Plínio Salgado entre os tupis, que na concepção dele se permitiriam dizimar pacificamente para viver no sangue de cada brasileiro, e os tapuias, cujo ímpeto guerreiro e hostil à assimilação os levou ao completo apagamento.
Tudo isso indica um fenômeno que é importante não esquecer. Se há algo que a estetização política produzida pelo fascismo compreendeu é que não há insurreição popular sem reconstrução estética do povo. Há uma dimensão profunda dos embates políticos que são embates estéticos – entre formas distintas de afecções e circulação da experiência sensível. De certo modo, involuntariamente – como é involuntário todo verdadeiro ato político –, o manifestante que esfaqueou a tela de Di Cavalcante disse exatamente isso.
Fonte: Piauí (acesse aqui)
Autor: Vladimir Safatle
Publicado em: 01/03/2023