Protestos que exigem intervenção militar no país sinalizam para uma perigosa descrença na democracia.
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Depois de duas semanas de persistentes protestos contra o resultado da urnas e exigindo uma intervenção militar no país – ainda que manipulados pelas redes e com financiadores ocultos –, precisamos refletir: com o que estamos lidando?
Democracia em descrédito
Especialistas ouvidos por Uirá Machado, para a Folha de S. Paulo, consideram que a descrença nas eleições acende um sinal de alerta: se o principal instrumento garantidor da democracia é deslegitimado, abre-se espaço para clamores autoritários.
“Em uma sociedade que já sofreu uma ditadura militar, pessoas pedindo um golpe é um problema. E o problema se torna maior quando a demanda por um golpe reflete a desconfiança deliberadamente plantada na cabeça de um segmento pelo próprio presidente. A construção dessa deslegitimação é o primeiro passo para que as pessoas possam pedir soluções fora do âmbito da democracia. Isso é muito grave porque dificulta a possibilidade de pacificar o país, de acalmar os ânimos dentro da democracia”, diz o cientista político Guilherme Casarões, professor da FGV e coordenador do Observatório da Extrema Direita.
“Democracia é simplesmente um sistema no qual ocupantes do governo perdem eleições e vão embora quando perdem”. A definição simplificada do termo, extraída do livro Crises da democracia, do cientista político Adam Przeworski (Universidade de Nova York), dá a medida do problema que o Brasil enfrenta. “Para o ciclo democrático funcionar a contento, as forças políticas derrotadas em uma eleição precisam acreditar que poderão vencer no futuro. Do contrário, os perdedores podem preferir disputar o poder com armas na mão”.
Golpe como única opção
“Os ataques ao resultado do pleito e os protestos contra Lula antes mesmo de ele tomar posse já representam uma desvirtuação do que seria esperado em uma democracia. (…) O risco embutido na farsa sobre as urnas é o de criar a percepção artificial entre bolsonaristas de que o processo eleitoral não é um jogo limpo, levando à conclusão falsa de que o golpe de Estado seria a única opção que lhes restou”.
“Esses protestos mostram que, pelo menos para algumas pessoas, a democracia não é o único caminho aceitável e que elas preferem um regime autoritário a um democrático”, concorda o brasilianista Anthony Pereira, da Universidade Internacional da Flórida (EUA), autor de Ditadura e Repressão.
Para a cientista política Erica Frantz, da Universidade Estadual de Michigan, os protestos “sinalizam que a democracia está em perigo”. Ela afirma que dois elementos são importantes para a democracia sobreviver: respeito ao resultado eleitoral e compromisso dos militares de ficarem fora do processo. No Brasil, os dois fatores vêm sendo ignorados por uma parcela da população.
“Um fator decisivo que pode influenciar a decisão de militares de intervir na política e desferir um golpe é se existe apoio público a essa iniciativa”, lembra Frantz.
Como lidar com o golpismo?
“Analistas dão muita atenção aos cidadãos comuns que estão nas ruas. Mais ênfase precisa ser dada às elites que estão no centro de tudo isso”, diz Erica Frantz. “Eu encorajaria a sociedade civil a responsabilizar esses indivíduos pelos danos que causam à democracia”.
Anthony Pereira defende que, na ausência de mobilização das Forças Armadas e desde que os atos não se tornem violentos, é melhor deixar os protestos continuarem. “Toda democracia tem pessoas que são antidemocráticas. Os democratas se distinguem por não encarcerar essas pessoas”.
Fonte: Folha de SP (acesse aqui)
Autor: Uirá Machado
Publicado em: 12/11/2022