“O ARTIGO 142 DA CONSTITUIÇÃO, QUE DEFINE A ATRIBUIÇÃO DAS FORÇAS ARMADAS, DIVIDE SEUS DEBATEDORES EM TUDO.”

Maria Cristina Fernandes – Valor – 23/02/23

“Em 1930 eu fiz a revolução com os tenentes e, em 1937, com os generais”, disse Getúlio Vargas, soltando uma sonora gargalhada. Sintetizava assim o protagonismo militar em dois momentos-chave do último século. Não foi uma exclusividade do seu tempo: o poder dos fardados é uma constante histórica no país – semeado a partir da campanha da Guerra do Paraguai (1864-1870), eclodiu no golpe da Proclamação da República (1889), deu sustentação e derrubou a Era Vargas, encontrou seu auge na ditadura de 1964-1985, meteu-se na Constituição de 1988, exerceu pressão nas décadas da redemocratização e volta a assombrar o país no século XXI.

Três artigos no Valor Econômico tratam do tema em perspectiva histórica e do dilema que o cerca atualmente: mexer ou não no artigo 142?

O legalismo que convém

Getúlio viveu na corda bamba com os comandantes militares. Em 1945, com o país cansado da ditadura do Estado Novo e os militares irritados com o “queremismo”, os generais viram na nomeação de Benjamim Vargas, o irmão fanfarrão do presidente, para a chefia da polícia federal, o estopim para a deposição de Getúlio.

Em agosto de 1954, depois de voltar ao poder democraticamente, Vargas viu-se diante de novas crises militares, e “saiu da vida para entrar na História”. Em fevereiro daquele ano, o “Manifesto dos Coronéis”, documento em que 82 oficiais (muitos deles futuros protagonistas do golpe de 1964) protestaram contra “manejos sindicalistas do ministro do Trabalho“, culminou na demissão de João Goulart da pasta. Na ocasião, Jango articulava um reajuste de 100% do salário mínimo. Foi o início do fim do caudilho.

“Pode-se fazer tudo com as baionetas, menos sentar-se sobre elas. E Getúlio sentou”, disse o general Nélson de Melo – que foi chefe da Polícia do Distrito Federal na ditadura do Estado Novo e mais tarde chefe do gabinete militar de Juscelino Kubitschek – em depoimento à FGV no fim dos anos 1970.

Segundo ele, o Exército não traiu o regime ao depor Getúlio, porque eram os militares quem o sustentavam e o país exigia eleições. “O Exército não é democrata, é legalista, pela própria missão”, definiu o general, quando o Brasil vivia há mais de década sob ditadura militar.

Fica o alerta para Lula: não sentar sobre as baionetas.

A tutela militar na berlinda

O Artigo 142 da Constituição, que define a atribuição das Forças Armadas, divide seus debatedores em tudo.

Se a demissão do ex-comandante do Exército, Júlio Cesar Arruda, fez com que Lula assumisse, de fato, o comando das Forças Armadas e abriu uma janela histórica para que a sociedade discuta os resquícios da tutela militar, o consenso é de que além disso o presidente não deve ir. A tarefa é do Congresso.

Interlocutores como o ex-ministro da Defesa, Nelson Jobim, advogam contra quaisquer tentativas de alteração no artigo 142. Uma tentativa mudança sugere que a Constituição abriga, sim, uma visão dúbia do que seja o papel das Forças Armadas. E hoje contam-se nos dedos os juristas que veem, no artigo 142, as bases para o exercício do “poder moderador” – no que o ministro Gilmar Mendes chamou de “hermenêutica das baionetas”. Além disso, dada a correlação de forças desfavorável no atual Congresso, há risco real de derrota.

Há pontas soltas entre uma opinião pública aparentemente aberta a mudança, um Congresso conservador, um Judiciário dividido e Forças Armadas ainda em processo de desbolsonarização. E não há quem as costure.

Militares não devem ser ouvidos

Foi recebida com cautela a declaração do ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, de que pretende discutir o tema com os comandantes militares. A iniciativa não apenas coloca o governo no olho do furacão como convoca as Forças Armadas à discussão.

A ideia de que os militares não deveriam ser ouvidos porque já o fizeram em demasia na Constituição de 1988 é reforçada por um depoimento inédito prestado pelo general Leônidas Pires Gonçalves ao projeto “Memórias da Constituinte” em 2009. Primeiro ministro do Exército pós-ditadura, o general conta como atuou para que a ingerência militar na lei e na ordem internas permanecessem intactas.

Na época, ele elaborou 26 pontos que seriam a prioridade das Forças Armadas e enviou a todos os congressistas. Colocou oito assessores dia e noite no Congresso, chefiados por um general. Quando o último deputado saía, o oficial mais credenciado ligava para ele, “não importando a hora que fosse”.

Nas contas do professor Antonio Sergio Rocha (Unifesp), a atuação das Forças Armadas na lei e na ordem entrou e saiu nove vezes do anteprojeto constitucional. A pressão militar finalmente prevaleceu quando a reação conservadora que daria origem ao Centrão pariu o terceiro regimento da Constituinte e possibilitou a desidratação da comissão de sistematização.

“O Exército conseguiu tudo o que queria na Constituição”, resumiu o general.

Fonte: Valor (acesse aqui)

Autor: Maria Cristina Fernandes e Andrea Jubé

Publicado em: 23/02/2023