Conrado Hübner Mendes – Folha de S. Paulo – 13/10/22
Já virou a paisagem natural deste período eleitoral: violações à lei são noticiadas diariamente, e não parece existir instituições de controle capazes de impedi-las.
Bilhões desviados do orçamento secreto elegem candidatos Brasil afora; INSS engana idosos ao condicionar aposentadoria ao voto em Bolsonaro; Caixa anuncia 90% de perdão de dívidas em evento de campanha; pagamentos de auxílios são antecipados; explodem denúncias de assédio de patrões; presidente utiliza as Forças Armadas para desacreditar as urnas, ataca o Supremo, a imprensa, as pesquisas; sem falar na atuação da indústria das fake news, já tornada corriqueira de tão impune, na utilização de igrejas como palanques de uma “guerra do bem contra o mal” e na escalada de casos de violência política por parte dos bolsonaristas.
A escala é inédita e o caminho parece sem volta. Conrado Hübner Mendes explica por que já não podemos qualificar o processo eleitoral brasileiro como democrático.
Autocracia com urnas
“Eleições são tão essenciais à democracia quanto à autocracia. Eleições distintas, mas nem sempre se percebe como: livres e justas, de um lado; um simulacro mais ou menos disfarçado, de outro. Todo autocrata gosta de brincar de se eleger sem risco. Precisa exibir musculatura. Putin, Chávez, Maduro, Ortega, Orbán, Erdogan, Lukashenko: Bolsonaro joga nessa superliga e as eleições de 2022 já avançam nessa direção”.
Poderes assimétricos
“Eleições podem apresentar graus de autoritarismo quando se tornam jogo assimétrico. Regras são violadas sem consequência e um lado dispõe e usa de recursos de poder incomparáveis ao outro. Garantir eleições justas depende da livre formação e expressão da escolha do eleitor. Requer informações públicas confiáveis e ausência de medo. Depende da distribuição transparente e equilibrada de dinheiro de campanha, sujeito à fiscalização, e de instituição de estado imparcial para arbitrar esse jogo”.
Crimes impunes
“Os exemplos de abuso de poder (político, econômico, religioso e midiático) na campanha de Bolsonaro são inéditos e vastos em escala. A utilização do aparato do Estado, de recursos orçamentários, de notícia falsa travestida de liberdade de expressão e do pânico moral travestido de liberdade religiosa deveria resultar em sanções como inelegibilidade e cassação de mandato”.
E por que não resulta?
“O tempo judicial, somado aos remédios modestos que juízes eleitorais dispõem, não acompanha o tempo eleitoral na era da comunicação instantânea. A Justiça Eleitoral continua a perder esse jogo. Não voltaremos a ter pleitos equilibrados sem repensar esse desenho regulatório”.
O assédio permanente intimida as instituições de justiça, sobretudo o STF e o TSE, que se veem constrangidos no cumprimento de seu papel: quanto mais atacados, mais são vistos como entes políticos, e quando reagem alimentam os ataques. É uma armadilha da qual não conseguem se livrar, enquanto assistem ao avanço dos crimes eleitorais.
“Esse ritual visceralmente comprometido pela delinquência política, Bolsonaro chama de ‘eleições livres’. E, apesar de tudo, ainda pode perder, pois a urna eletrônica segue funcionando. Se perder, chamará de ‘eleições fraudadas’.”
Distopia brasileira
“O país não está dando passos para trás. Dá passos para o desconhecido.
Um desconhecido onde a vida é descartável, a mulher é servil, o diferente é violentado, a criança não tem proteção social, laços são precários e regidos por ódio e medo. Onde Deus é cruel e a lei é a do homem armado que atira primeiro. Hoje ele mata, amanhã ele morre.
Eventos climáticos extremos, pobreza extrema e riqueza extrema, protegida em bunkers físicos e simbólicos, compõem a distopia que Ignácio de Loyola Brandão foi capaz de imaginar em Não verás país nenhum, 40 anos atrás. Bolsonaro vende essa vida perigosa e miserável como ‘vida livre’.”.
Fonte: Folha de SP (acesse aqui)
Autor: Conrado Hübner Mendes
Publicado em: 13/10/2022