“OS PATRIOTAS QUE NEGAM O RESULTADO ELEITORAL JAMAIS RECONHECERÃO QUE TAIS ATOS VIOLENTOS TENHAM SIDO EXECUTADOS POR ‘CIDADÃOS DE BEM’”.

Letícia Cesarino – Carta Capital – 26/12/22

Antropóloga, professora e pesquisadora na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), autora de O mundo do avesso: verdade e política na era digital, Letícia Cesarino explica como a estrutura do discurso fascista dificulta o enfrentamento do terrorismo de extrema-direita no Brasil.

Restrição legal

Não tem sido simples enquadrar essas ações na Lei Anti-Terrorismo brasileira, aprovada em 2016. À época, foram incluídos vetos e dispositivos visando prevenir sua aplicação política a movimentos sociais de esquerda. No artigo 2 a Lei restringe a definição de terrorismo a atos motivados por “razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião”. E se não for possível definir a extrema-direita brasileira por um tipo de pauta específica?

Bolsonaro e seus aliados operam uma comunicação ambígua que oscila sempre entre dois níveis, um político e um meta-político. Suas falas incluem muitos “apitos de cachorro” para a base extremista, mas que dificilmente assumem um caráter explícito ou inegavelmente racista ou xenofóbico.

Significantes vazios

Essa força política, que qualifico como anti-estrutural, opera mimetizando e corroendo por dentro discursos e práticas do campo progressista democrático.

Movimentos desse tipo são definíveis menos por um conteúdo específico do que por uma forma de operação do político, que é o avesso da democracia liberal. Quanto mais extremista, mais o discurso se ancora em significantes vazios, ou seja, termos que podem ser preenchidos por praticamente qualquer conteúdo projetado pelo receptor da mensagem a partir da sua experiência pessoal: Pátria, Deus, liberdade, família (e também os discursos negativos anti-corrupção, anti-comunismo etc.).

Fascismo algorítmico

O discurso do líder torna-se plástico, se adaptando continuamente às insatisfações e demandas dos seus seguidores. O líder fascista é uma projeção da vontade de poder e liberdade ilimitada das massas.

A plataformização da internet facilitou esse tipo de crowdsourcing, pois disponibiliza métricas algorítmicas para que o líder receba esse feedback em tempo real, e ajuste seu comportamento de acordo.

Do online para o offline

Esses espaços liminares online se transfiguraram nos espaços liminares off-line que vemos na frente dos quartéis. A produção desse tipo de identidade é altamente ritualizada – o que temos visto nos desfiles, coreografias, jograis e orações diariamente realizados por eles. Esses vídeos são então compartilhados com outros patriotas em mídias sociais e aplicativos.de mensagens, produzindo uma experiência de simultaneidade e portanto de coesão do “povo”. 

Patriotas em negação

A estrutura do discurso fascista ajuda a explicar por que os patriotas que negam o resultado eleitoral jamais reconhecerão que tais atos violentos tenham sido executados por “cidadãos de bem”.

Ao serem confrontados com uma evidência – patriotas queimaram carros e ônibus em Brasília –, a reação não é rever os axiomas iniciais (no caso, cogitar que pode haver terroristas domésticos entre os patriotas). Pelo contrário, se modifica o objeto da afirmação de modo a excluir retoricamente aquele caso específico: nenhum patriota de verdade faria tal coisa. Cadê as mulheres, crianças, idosos, vestidos de verde e amarelo? Patriotas não cobrem o rosto, não usam preto. Isso é coisa de black blocs. Só podem ser esquerdistas infiltrados.

Fonte: Carta Capital (acesse aqui)

Autor: Letícia Cesarino

Publicado em: 26/12/2022