Luis Moreno Ocampo – Roda Viva – 27/02/23
Como a Argentina conseguiu submeter os militares ao poder civil e à democracia, imediatamente após vivenciar uma das mais sanguinárias ditaduras da América do Sul?
Retratado no filme Argentina 1985, o ex-promotor Luis Moreno Ocampo foi questionado no programa Roda Viva sobre as diferenças entre a redemocratização em seu país – onde os responsáveis pelos crimes do regime militar foram julgados e condenados (e ainda são) – e no Brasil, onde os agentes de crimes contra a humanidade foram anistiados e hoje o golpismo volta a contaminar os meios militares e ameaçar a democracia.
“O que houve de mais importante foi que a elite argentina, que havia usado as Forças Armadas para chegar ao poder por meio do golpe de Estado, mudou de opinião, não teve alternativa. As pessoas da elite argentina entenderam o que ocorreu e mudaram. Os grupos que antes chegavam ao poder por golpes de Estado participam da política, são políticos, ganham e perdem eleições. A maneira de adequar as Forças Armadas ao poder democrático foi com esse poder não querendo usar mais as Forças Armadas. Então, o risco não são os militares, são os políticos que querem usar as Forças Armadas.”
Missão dos militares
“O problema do militar é que ele está treinado para matar, e as leis da guerra permitem matar. O problema é gerar uma guerra dentro do país, transformar os cidadãos brasileiros, ou argentinos, em possíveis alvos das Forças Armadas. As Forças Armadas podem ter um papel de apoio contra grupos de crime organizado muitos fortes, mas não para o crime nacional. O crime nacional deve ser investigado de outra maneira. Polícia, promotores e juízes são as ferramentas para isso. O povo quer ordem e precisamos dar ao Estado ferramentas mais eficientes para conseguir essa ordem. E sabemos que matar não gera essa ordem.”
“Precisamos pensar que missão damos a eles. Os militares são pessoas que vão obedecer. Se dermos a missão de sequestrar e torturar, tudo vai ser ruim. Se dermos missões boas, tudo vai ser bom.”
“Cada país lida com o problema a seu modo. Na Argentina, Alfonsín teve a coragem e a visão de promover uma investigação sobre o passado. Na África do Sul, Nelson Mandela não conseguiu fazer isso. Ele nunca investigou os militares, porque os militares, duas semanas antes de Mandela assumir o poder, disseram: ‘Olha, nós ajudamos essa transição democrática durante cinco anos, ajudamos até com sua libertação, mas não nos investigue. Se nos investigar é o fim’. E Mandela inventou o que chamou de Comissão da Verdade. Que significava que se podia dizer a verdade sem sofrer punição. Cada país encontra sua fórmula, e suponho que o Brasil também vai encontrá-la. É muito importante para todo o continente. Os militares obedecem. Eu vi isso no meu país. Os militares obedecem. O presidente dá ordens, ele muda o chefe do Exército e pronto, acabou.”
Bolsonaro e o apoio à tortura
“Se o Bolsonaro aprova tortura… O que eu sei é que Bolsonaro era do Exército naquela época e, geralmente, o pessoal do Exército costuma achar que são atacados e que precisam atacar para se defender. Então, essa ideia de torturar tem a ver com aquela ideia de atacar um grupo de guerrilheiros para descobrir quem são, e assim se justifica a tortura. E ele não é o único. O Trump também justificava a tortura. Sempre vai haver pessoas que pensam diferente, a questão é haver pessoas que apoiem isso ou não. Por isso a luta pela memória é fundamental: porque os líderes são eleitos pelo povo, e o povo tem que entender isso. Afinal, o povo é responsável pelos líderes que elege. Isso se chama democracia.”
8 de janeiro
“Hoje no Brasil o mais importante é investigar o 8 de janeiro, por ser o problema atual. Quem apoiou e por quê? Muitas pessoas que participaram foram voluntariamente, achando que faziam o certo. Como pode haver gente pensando assim? Precisamos entender isso, e também a conexão com o 6 de janeiro nos Estados Unidos. Há pessoas em comum, financiadores em comum? É o que temos que investigar hoje, pois é o que vai fortalecer ou debilitar a democracia no Brasil e no mundo inteiro. E não apenas os responsáveis, mas quem apoiou, porque o apoio é público. Vejamos quem apoia isso publicamente.”
“Se houve plano com bomba, deve ser investigado a fundo: quem colocou a bomba, de onde saiu essa bomba. O Brasil deve levar isso muito a sério, de forma muito confiável. Isso não pode acontecer de novo.”
Isolar empresários golpistas
“Não conheço ao certo os fatos, mas no mínimo foram atos de sedição que devem ser investigados. Me parece importante também a mídia explicar essa questão de maneira mais ampla, mostrando como funciona o sistema político e quais empresários brasileiros apoiaram aquilo. Digamos que é necessário isolar o sistema político empresarial que deu apoio àquilo. E isso vai acontecer, principalmente, na mídia, mas também na política e no âmbito social. É fundamental que os setores empresariais não queiram dar apoio a esse tipo de iniciativa.”
Exemplo para o mundo
No final de janeiro, Ocampo concedeu entrevista a Daniel Haidar, da BBC News Brasil, na qual compartilhou outras reflexões sobre a democracia, os militares e os desafios atuais do Brasil.
“A falta de clareza do que aconteceu no Brasil durante a ditadura ajuda pessoas a romantizar sobre serem protegidas por homens fortes.”
“O Brasil virou exemplo de como a democracia sob ataque é um problema global.”
“Ainda que existam diferenças políticas, todos os políticos precisam concordar em proteger a democracia. O Brasil pode mostrar ao mundo como reagir politicamente a ataques contra a democracia. Por isso, acredito que o governo Lula tem que criar um consenso sobre isso. Sei que é difícil, porque as redes sociais estão tornando a sociedade muito fragmentada.”
Fonte: Roda Viva (acesse aqui)
Autor: Luis Moreno Ocampo
Publicado em: 27/02/2023