João Cezar de Castro Rocha – Estado de Minas – 21/10/22
Autor de Guerra cultural e retórica do ódio: Crônicas de um Brasil pós-político, João Cezar de Castro Rocha, da UERJ, explica, em entrevista a Bertha Maakaroun, do Estado de Minas, que a extrema-direita brasileira faz do país um experimento de dissonância cognitiva em larga escala, visando “criar as condições para instaurar um Estado totalitário e fundamentalista, do ponto de vista religioso”.
O projeto da extrema-direita
O Brasil é um laboratório mundial de criação metódica de realidade paralela. O que a extrema-direita tem feito no plano da política é a despolitização do debate público para avançar o projeto político totalitário – de eliminação completa do adversário ou do outro que resiste – em algumas circunstâncias, mesmo teocrático. E como isso se realiza? Produzindo a dissonância cognitiva coletiva pela instrumentalização da midiosfera extremista. Por que as redes sociais são o sal da terra para a extrema-direita? O que se trata é trazer para o campo da política o alto nível de engajamento das redes sociais. Ora, qual é a finalidade da eterna guerra cultural da extrema-direita? Não é mudar o voto do campo adversário! Estão preocupados em aumentar a presença nas redes sociais, com conteúdo abjeto, absurdo, pois essa presença pode se materializar em votos, capturando o campo dos indecisos. Na iminência do segundo turno das eleições, a midiosfera extremista transformou-se em uma usina sórdida de desinformação e seus artífices incorrem nos mais variados tipos criminais como se não houvesse amanhã.
Dissonância cognitiva
Conceito criado pelo psicólogo social norte-americano Leon Festinger em 1957, a dissonância cognitiva é um desconforto subjetivo causado pela consciência da distância entre crenças e comportamentos. Diz Festinger: o famoso exemplo do médico que fuma, ninguém melhor do que ele saberá que o tabagismo faz mal à saúde. Então, o que faz ele? Ou recusa fontes que demonstram cientificamente que o tabagismo é maléfico, ou busca fontes que amenizam essa informação. Ou você recusa a informação que contraria a sua crença, ou você busca informação que reforça o que já pensava. É a própria midiosfera extremista. O que está acontecendo com o bolsonarismo é a cristalização, a consolidação de um Brasil paralelo.
Dimensão paralela
As pessoas que voluntariamente se submetem à midiosfera extremista estabelecem um pacto: somente se informar na midiosfera extremista; nunca aceitar outra fonte. Então, não há mais possibilidade objetiva de se demonstrar que há erro nessas informações, porque todas as outras fontes de informação foram desqualificadas e vedadas. Dezenas de milhões de brasileiros e brasileiras estão vivendo na ilusão, estão realmente convencidos de todo conteúdo dessa usina de desinformação, dessa máquina tóxica de produção de conteúdo com base em fake news e teorias conspiratórias, que domina a midiosfera bolsonarista. Para dizer de forma mais simples: essas pessoas estão vivendo numa dimensão paralela. A onda transnacional da extrema-direita criou uma inédita dissonância cognitiva coletiva deliberada, por meio de um conteúdo coordenado, estrategicamente produzido para desinformar e fazer circular teorias conspiratórias e fake news. O universo digital e as redes sociais possibilitaram isso.
À prova de razão
João Cezar de Castro Rocha conta um caso acompanhado por Leon Festinger em 1954: uma dona de casa começou a receber supostas mensagens de um extraterrestre e criou uma seita que se preparou para o dia em que seriam salvos de um dilúvio que destruiria a Terra. Na data anunciada nada aconteceu, e a explicação “extraterrestre” foi de que a energia positiva do grupo tinha conseguido evitar o dilúvio. “O fracasso da profecia foi racionalizado e os adeptos da seita se tornaram salvadores do mundo. Festinger conclui: ‘Um homem convicto é resistente à mudança. Discorde dele, e ele se afastará. Mostre fatos e estatísticas, e suas fontes serão questionadas. Recorra à lógica, e ele não entenderá sua perspectiva’. Se você acrescentar a essa certeza paranoica o caráter coletivo da poderosa midiosfera da extrema-direita, temos o caos cognitivo transformando-se em realidade alternativa. É o que vivemos no Brasil hoje”.
Erro x ilusão
É preciso resgatar uma distinção entre “erro” e “ilusão” que Freud propôs em ensaio de psicologia social muito importante, “O futuro de uma ilusão”. Erro está no campo do objetivo e pode ser demonstrado. Mas, diz Freud, o importante para compreender a sociedade não é o erro; o importante é a ilusão, a projeção de um desejo. E o desejo é de que as teorias conspiratórias e as fake news que circulam na midiosfera extremista, e que são confirmadas, por exemplo, pela Jovem Pan, sejam a verdade.
Estrutura da midiosfera
A midiosfera extremista é poderosa máquina de desinformação, talvez a maior da história da humanidade. É composta por cinco elementos: as correntes de WhatsApp; o circuito integrado de canais de YouTube com capacidade tóxica de desinformação; as redes sociais; aplicativos como o Mano, cujo garoto-propaganda é Flávio Bolsonaro; e um aplicativo do Facebook, a TV Bolsonaro. O que se produz 24 horas, sete dias por semana, é conteúdo audiovisual de adesão incondicional a Bolsonaro. E há um quinto elemento, que é muito grave; como metonímia do processo, cito a Rádio Jovem Pan. Por esse veículo, todas as teorias conspiratórias e as fake news que circulam na midiosfera extremista são legitimadas, são validadas, porque são reproduzidas nesse veículo fora da midiosfera.
Microdirecionamento e algoritmos
Assim como a extrema-direita mundial, o bolsonarismo no Brasil investe numa campanha de conteúdo e microdirecionamento digital. É equívoco imaginar que as redes sociais sejam horizontais, pois as grandes plataformas fazem o papel do elemento verticalizador: determinam a lógica do algoritmo e as políticas aceitáveis de comportamento no interior das redes. No interior da midiosfera, circula sem cessar produção audiovisual que difunde o sistema de crenças bolsolavista, com exortação incessante aos golpes de Estado e à eliminação física de adversários, entre outras teorias conspiratórias. Os integrantes compartilham e reproduzem horizontalmente esse conteúdo estrategicamente elaborado com as suas redes. O bolsonarismo, assim como a extrema-direita transnacional, criou uma profissão: o MEI (microempreendedor ideológico) – há muitas pessoas ganhando dinheiro com radicalização política em seus canais no YouTube.
E agora?
O Brasil vive uma situação grave, nunca estivemos numa situação tão grave na história da República. A analogia que faço: estamos hoje no Brasil em 1913, o ano do filme A fita branca, que retrata a futura geração que viverá a ascensão do nazismo. Estamos vendo pessoas que conhecemos e respeitamos, e já imaginamos que pudessem ser cúmplices de um projeto totalitário de poder. O Brasil precisará de pelo menos uma década para tentar remediar o malefício causado pelo ensinamento da retórica do ódio e da lógica da refutação de Olavo Carvalho, que tornam o debate impossível. Vamos enfrentar dezenas de milhões de brasileiros e brasileiras enredados numa realidade paralela. Vamos ter de trabalhar muito.
Fonte: Estado de Minas (acesse aqui)
Autor: João Cezar de Castro Rocha
Publicado em: 21/10/2022