Rosana Pinheiro-Machado – Sul 21 – 26/10/22
Luciano Velleda, do Sul 21, entrevistou a antropóloga Rosana Pinheiro-Machado, professora titular da University College Dublin, na Irlanda, e diretora do WorkPoliticsBip, laboratório que investiga o nexo entre precariedade e extrema-direita no Sul Global.
Alguns trechos:
Trump dos trópicos?
Se a gente pensar que o Bolsonaro é um “Trump dos Trópicos”, a gente não está pensando nas consequências no Brasil, onde a democracia é muito mais frágil. As consequências de uma extrema direita aqui são muito mais violentas. O que acontece no Brasil em termos de gênero, perseguição de professores, o que está acontecendo na Amazônia, é incomparável. Talvez o Brasil seja o caso mais radical hoje da extrema-direita no mundo.
Ditadura idealizada
É muito diferente da memória da ditadura que se tem no Chile e na Argentina, por não ter feito um processo de Justiça de Transição. Isso permite que a memória seja apagada, que é o mais grave, permite que milhões de pessoas no Brasil achem que a ditadura foi boa ou “não foi nada disso”.
Não foi um fato punido, em que as pessoas foram trabalhadas como criminosas. Então se faz uma transição em que tudo é apagado, a gente faz as pazes, todo mundo recebe anistia e o impacto disso vai ser uma visão idealizada da ditadura militar. E isso faz com que o atual presidente, no dia em que vota para o impeachment (de Dilma Rousseff, em 2016), diga que faz em nome do [Carlos Alberto Brilhante] Ustra, que foi um dos torturadores mais perversos da história do Brasil.
Muitas pessoas nas periferias achavam que só o Exército poderia trazer ordem para o país de novo, até no sentido de trazer valores que são positivos em termos de ser contra a violência. E isso abriu margem para o novo militarismo.
A batalhas das mídias
Participei de um seminário na embaixada da Espanha chamado “Desafios da comunicação política”, com os maiores especialistas do mundo, e ninguém sabe como fazer. A extrema-direita sempre teve, de alguma maneira, o monopólio dessa comunicação porque a lógica autoritária e simplista age por medo e fake news. O rádio teve um papel fundamental e ainda tem. E mesmo que o rádio não seja bolsonarista, é o dia inteiro noticiando problema, morte, assassinato, roubo e aquilo vai gerando um ódio na pessoa, uma raiva do mundo. E as redes sociais elevaram isso numa potência inimaginável, com a desinformação descarada como projeto e numa evolução muito rápida, porque a gente não conseguiu vencer as fake news do WhatsApp.
E o ecossistema vai mudando por diferentes redes. Podcast, Tik Tok, Instagram… não era decisivo, nem existia tanto. E a gente está correndo atrás. A gente sempre diz que tem que disputar, tem que ser um projeto contínuo da esquerda, não só durante a eleição. O mundo não vai ser mais como era antes e a gente vai ter que aprender.
Usar os mesmos métodos?
Sou absolutamente contra a ideia de copiar as táticas deles, tenho medo que isso aconteça. A gente vê algumas pessoas defendendo isso em nome de um “bem maior”, mas isso é a lógica deles, porque eles também acreditam que é para um “bem maior”. Existe a importância de disputar as redes e regulamentar as redes, no sentido de haver algum controle sobre conteúdos violentos e criminosos. Não pode neonazista falar como fala hoje.
Esse fenômeno veio para ficar, não tem como parar. Tem que transformar a sociedade para que as pessoas sejam menos vulneráveis. Todas as pesquisas do mundo mostram que quanto mais desigualdade, mais penetração da extrema direita.
Bolsonarismo veio pra ficar
O bolsonarismo foi criando uma identidade tão forte que não é mais sobre valores, é sobre a reafirmação do seu próprio conservadorismo. Bolsonaro pode fazer qualquer coisa que as pessoas vão dizer que é mentira ou que não importa. Esse é um processo de psicologia de massas e de antropologia, de criação da identidade do “nós contra eles”, que é primário na formação de estar no mundo. Se você está com Bolsonaro e você vai reafirmando, reafirmando, vai passando por diversas pautas, é sobre pertencimento, sobre um lugar no mundo e reafirmar a própria verdade.
É um processo que veio para ficar, não tem o mínimo sinal da gente sair disso. O Brasil vai ser esse por muito tempo. É revolucionário o processo, no sentido de que é o fim de uma ideologia que acreditou na democracia racial.
Acho que o bolsonarismo sai até mais forte dessa eleição, mesmo perdendo, porque demonstrou ser resiliente e está cada vez mais coeso. Nunca vi a força do bolsonarismo tão forte como agora. Antes tinha um núcleo duro de 20%, agora o núcleo duro cresceu demais, é praticamente todo mundo que vota com o Bolsonaro.
A gente está vivendo num mundo paralelo.
Fonte: Sul 21 (acesse aqui)
Autor: Rosana Pinheiro-Machado
Publicado em: 26/10/2022