Esther Solano – O Globo – 04/10/22
Professora e pesquisadora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Esther Solano analisou a conjuntura política a partir dos resultados do primeiro turno das eleições.
“Muitos pensaram que Bolsonaro era efeito de uma conjuntura de 2018, que reuniu desinformação, facada e antipetismo. Isso ajudou, mas há outros fatores no bolsonarismo que o aproximam da população”.
Defesa da democracia não mobiliza
O conceito de democracia é mobilizador para uma classe média e alta, mas está distante demais da realidade concreta de eleitores em situação econômica emergencial. Também não tem a mesma concretude ou tangência que as pautas morais, no caso de pessoas mais inseridas em um tipo de sociabilidade religiosa. Por outro lado, uma questão relevante é o medo da instabilidade. Não houve outra eleição com um amedrontamento coletivo tão grande, e de alguma forma os eleitores mais pobres vinham associando a postura de Bolsonaro de peitar o resultado das eleições, de produzir barulho e caos, com riscos de instabilidade econômica e social.
Polarização e o desejo do eleitor
O que este primeiro turno mostrou é que há uma disputa cristalizada entre lulismo, que não tem concorrência à esquerda, e bolsonarismo, representando uma direita conservadora em termos morais e ideológicos que não existia antes com tanta força, porque não era representada pelo PSDB. Bolsonaro canaliza um sentimento antissistema que sempre vai existir em um país onde a maior parte do eleitorado é esquecida pelo sistema. A base social do país mudou muito em 20 anos, com o fenômeno das igrejas evangélicas e da nova classe média, da uberização do trabalho, além da radicalização de argumentos golpistas. Mas o que aparece nas pesquisas qualitativas é que o eleitor, especialmente o mais pobre, hoje quer primeiramente voltar a um patamar de dignidade material, colocando mais comida na mesa, pagando as contas com maior tranquilidade, e num segundo momento ter condições de ir ao cinema, comprar um presente para os filhos. Em resumo, esse eleitor espera mais do que sobreviver. A votação de Bolsonaro em 2018 foi impulsionada por eleitores ressentidos, que se sentiam abandonados por uma classe política percebida como um grupo que não dava a mínima para eles. É um eleitor profundamente frustrado tanto pela direita quanto pela esquerda.
Semelhanças com o trumpismo
Existem muitos elementos em paralelo, sobretudo a performance online dessa nova extrema-direita. É nativa das redes sociais, e se alimenta de uma retórica que a gente denomina de “fascismo pop”, de uma forma de discurso de ódio “memeficado”, e que alcança a massa. Há também nos dois casos núcleos cristalizados de eleitores, menores do que a base de votantes, que representam uma compreensão de mundo sob uma perspectiva patriarcal, branca e cristã. Essa tentativa de recuperar uma estrutura social de privilégios e de não suportar a identidade alheia, combinada à desilusão com os Democratas e com o PT, torna este eleitor mais vulnerável àquele que, com um discurso sedutor, se apresenta quem vai “peitar” a política e o politicamente correto.
Ocaso do outsider
Há um elemento comum à trajetória de outsiders em geral: quando você se elege com viés antissistêmico e se torna o sistema, você não tem muito para onde correr. A figura do Bolsonaro outsider de 2018 estava fadada ao fracasso. Há quatro anos, em meio ao ressentimento, à frustração e ao colapso partidário e social, o discurso ostensivo de violência do bolsonarismo, com posicionamentos racistas e machistas, foi até bem-vindo pela maioria do eleitorado. Mas depois, no momento da governabilidade, as pessoas entendem que isso não faz sentido, porque cria obstáculos. O outsider é vítima de seu próprio discurso, do ethos belicoso que gera na política.
Fonte: O Globo (acesse aqui)
Autor: Esther Solano
Publicado em: 04/10/2022