“NÃO SERÁ POSSÍVEL BARRAR O BOLSONARISMO SE NÃO COMPREENDERMOS DE VEZ QUE ESTAMOS DIANTE DE UMA REVOLUÇÃO QUE TROCOU DE SINAIS.”

Vladimir Safatle – A Terra é redonda – 15/10/22

O plebiscito das urnas não deixa dúvida: quase a metade da população brasileira aprova o projeto de Jair Bolsonaro. Mesmo que seu líder não seja reeleito, o bolsonarismo é uma realidade já enraizada na sociedade brasileira.

Estamos diante de uma revolução reacionária. Para enfrentá-la, é preciso construir um processo político “que não esteja simplesmente baseado no medo, no ‘fora Bolsonaro’, que não fique apenas falando como o passado era melhor que o presente”, analisa Vladimir Safatle, professor da USP, em artigo para o site A Terra é redonda.

Entender a revolução

Categorias como “discurso de ódio”, “ressentimento”, “obscurantismo” e “pulsão de morte” só servem para alimentar uma inútil sensação de superioridade, que nos afasta do enfrentamento das reais questões postas.

Não cabem mais “explicações meramente ‘deficitárias’ para fenômenos ligados à extrema direita e ao fascismo. Explicações deficitárias são aquelas que entendem tais fenômenos como reações, regressões, defesas. Por mais que essa dimensão efetivamente esteja lá presente, nos falta algo de fundamental, a saber, o que faz do bolsonarismo um verdadeiro projeto de sociedade com força de projeção de futuro”.

“Bolsonaro passou quatro anos criando a imagem de ser um governo contra o Estado, de estar em luta contra as pretensas amarras postas por todos os poderes oligárquicos (Supremo Tribunal Federal, partidos, imprensa etc.)”. Assim consegue mobilizar grandes massas de apoiadores “aguerridos, convencidos, entusiasmados e dispostos. Pois elas e eles se veem como portadores de uma grande transformação nacional”.

Estágios da revolução

No que consiste a revolução? Primeiro, Bolsonaro “faria do Brasil um país mais livre. No caso, mais livre do Estado, mais próprio ao empreendedorismo. Essa noção de ‘liberdade’ parte de uma constatação real, a saber, não há mais espaço no capitalismo para promessa de construção de macroestruturas de proteção. As tentativas de reedição dos pactos sociais que permitiram o advento do Estado do bem-estar social mostraram-se insustentáveis porque a classe trabalhadora não conseguiu mais acumular força para exigir compensações”.

É a liberdade do neoliberalismo, portanto: “dar aos indivíduos a ‘capacidade de escolha’ e a possibilidade de lutar pela sua própria sobrevivência”. Tudo o que era responsabilidade do Estado e pacto coletivo passa para a esfera individual: escola é home schooling; a saúde é cada um por si (liberdade do médico receitar cloroquina e do indivíduo tomar vacina ou não, usar máscara ou não); segurança é providenciar sua própria arma. “Todas as obrigações de solidariedade com grupos mais vulneráveis são paulatinamente anuladas, pois tacitamente compreendidas como entraves para que a luta individual pela sobrevivência possa ocorrer de forma aberta”.

No segundo estágio da revolução bolsonarista, “teríamos um país mais popular e não mais subjugado pela sua elite cultural e seus modos de vida. A divisão entre elite e povo está lá, mas com sinais invertidos”.

Não mais a divisão entre massa espoliada e elite rentista, entre trabalhadores do campo e agronegócio. O inimigo do povo, para o bolsonarimo, é a elite cultural, “essa que pretensamente viveria das benesses do Estado, que estaria encastelada nas Universidades, que sonharia em impor seus modos de vidas, seu ‘globalismo’ e suas concepções de sexualidade ao povo”.

À ideologia ultraliberal, portanto, acrescentam-se mantras bem conhecidos na História, que ecoam o fascismo, o integralismo, o nazismo.

Combater a revolução

Para enfrentar o bolsonarismo é preciso desenvolver estratégias para incidir sobre seus dois pilares:

  • Recusar e fazer uma crítica radical à sua concepção individualista de “liberdade”;
  • Desconstruir seu antagonismo povo/elite.

E, imediatamente, fazer o possível e o impossível para impedir a reeleição de Bolsonaro. Um segundo mandato desceria muito mais fundo no caminho do autoritarismo e da violência generalizada. “Falar em direitos humanos, em ecologia, nesses anos, parecerá pregar no deserto”.

Empreendedorismo é fraude

“Retomar a capacidade de pautar a agenda de debate é a única forma de vencer efetivamente. Isso passa por insistir que a noção de liberdade propalada pelo bolsonarismo, baseada no empreendedorismo e na livre iniciativa, é uma fraude, simplesmente uma farsa. Empreendedorismo não é uma forma de liberdade, mas de servidão. É a violência da redução de todas as relações sociais a relações de concorrência, de competição e a compreensão de toda experiência como capital no qual se ‘investe’. É a implosão de toda obrigação de solidariedade. Nenhuma emancipação social passará pelo empreendedorismo”.

Esquerda é povo

“Não há política organizada pela esquerda sem colocar a divisão povo/elite onde ela é mais inclusiva e politicamente forte, a saber, na denúncia da espoliação de classe a que estamos todos submetidos. O que temos a dizer para quem é homem, branco, pobre, motorista de Uber, trabalhando 12 horas por dia em condições dignas do século 19? Diante de nossos discursos reinantes, é absolutamente racional que ele queira alguma garantia de que não será esquecido devido à prevalência de seus dois primeiros predicados”.

“Por que não pautar a eleição com propostas como redução da jornada de trabalho para 35 horas, aumento real do salário mínimo e imposto sobre grandes fortunas para a ampliação do SUS?”

“Sabemos da dificuldade de pautar o debate por essa via. Pois a esquerda brasileira foi colocada em uma situação de chantagem contínua”.

A chantagem do “pacto democrático”

Única esperança (ainda) eleitoralmente viável para barrar o bolsonarismo, cabe à esquerda – e bem especificamente ao PT – a missão histórica de impedir a continuidade da tragédia bolsonarista. É à Geni da política nacional na última década que os democratas agora correm para nos salvar do projeto de ditador que vai devorando o país. Espera-se que seja operadora de um grande “pacto democrático” reunindo todas as forças contrárias ao governo.

Mas para que tal grande coalização ocorra, a esquerda deve retirar da agenda “todos os pontos ‘que dividem a população’, a começar pelo ‘estatismo’ e pela mobilização da luta de classe”.

“Há de se agir como se houvesse chegada a hora de uma grande aliança nacional entre capital e trabalho e clamar, como vimos em um editorial terrível de um grande jornal brasileiro, que deveríamos ‘reconhecer que a agenda liberal dos últimos anos trouxe avanços duradouros’. Como se acordar em um país com filas para comprar osso em supermercados fosse agora sinal de ‘avanço duradouro’”.

Depois de mandar embora a ameaça do Zepelim, a Geni voltará a ser xingada como sempre.

Pacto manco

E é ilusório acreditar que esse anódino “pacto democrático” que silencia pautas de esquerda seja a receita do sucesso eleitoral. Que o diga o fracasso de Marcelo Freixo em versão amena “contra a barbárie”, e com César Maia de vice, derrotado já no primeiro turno no Rio de Janeiro.

Nacionalmente a dupla Lula-Alckmin também não rendeu o esperado, assim como a enorme aliança que hoje junta de Simone Tebet a João Amôedo não ampliou em 1 ponto a vantagem de Lula nas pesquisas do segundo turno. A esquerda pouco cresceu no Sudeste entre eleitores que normalmente votam e votaram no campo de centro direita.

A salvação nacional e a sustentação da candidatura continua sendo o Nordeste. “O que mostra quão correto estava um dos maiores intelectuais que o país conheceu, o paraibano Celso Furtado. Ele nos mostrou que uma política efetiva de desenvolvimento regional seria imediatamente sentida pela população, produzindo forte mobilidade social e trazendo vínculos políticos duradouros para os que nela apostaram”.

Era dos extremos

“Essa eleição é certamente o momento mais dramático da história brasileira. Ela mostra que não existe mais país onde ainda era possível costurar grandes pactos. Aquele país acabou. Não há mais base social para sustentá-lo. Entramos em definitivo na era dos extremos”.

Mas não devemos nos pautar pelo desespero. “A oposição brasileira mostra atualmente força e consciência do tamanho dos riscos que nos espreitam. Vemos articulações espontâneas vindas de todas as partes do país. Isso nos mostra que o Brasil não aceitará o curso dessa revolução conservadora que nos ameaça há tantos anos. Contra ela, enunciemos claramente as formas de outra sociedade.”

Fonte: A Terra é redonda (acesse aqui)

Autor: Vladimir Safatle

Publicado em: 15/10/2022