“NÃO EXISTE ‘SUPERAÇÃO’ ONDE ACORDOS SÃO EXTORQUIDOS E SILENCIAMENTOS SÃO IMPOSTOS. (…) O QUE VIMOS FOI RESULTADO DIRETO DA NOSSA ANISTIA.”

Vladimir Safatle – UOL – 27/11/22

Sob o título “Anistia nunca mais”, o filósofo Vladimir Safatle, membro fundador da Comissão Arns e professor na USP, esmiúça a espinhosa missão que a democracia brasileira tem pela frente: contrariando sua própria história, desta vez fazer justiça.

“Mobilizar a sociedade para a memória coletiva e suas exigências de justiça sempre foi e continua sendo a única forma de efetivamente construir um país”.

Vale ler o artigo inteiro. Abaixo, alguns trechos.

Não repetir o erro

“Muitas vozes alertam o Brasil sobre os custos impagáveis de cometer um erro similar àquele feito há 40 anos. No final da ditadura militar, (…) impôs-se a narrativa de que o dever de memória seria mero exercício de ‘revanchismo’.

Segundo a chamada “teoria dos dois demônios”, toda a violência estatal teria sido resultado de uma “guerra”, com “excessos” dos dois lados. “Ignorava-se, assim, que um dos direitos humanos fundamentais na democracia é o direito de resistência contra a tirania”.

O exemplo argentino

Será mesmo aconselhável “não olhar pelo retrovisor”, como sugere hoje o ministro do Supremo Dias Toffoli ao criticar, como se fosse “revanchismo”, a justiça de transição da Argentina, que puniu os criminosos estatais de sua ditadura? “Até segunda ordem, a Argentina nunca mais passou por nenhuma espécie de ameaça à ordem institucional. Nós, ao contrário, enfrentamos tais ataques quase todos os dias dos últimos quatro anos. Nada do que aconteceu conosco nos últimos anos teria ocorrido se houvéssemos instaurado uma efetiva justiça de transição, capaz de impedir que integrantes de governos autoritários se auto-anistiassem. Pois dessa forma acabou-se por permitir discursos e práticas de um país que ‘ficou preso no passado’. Ocultar cadáveres, por exemplo, não foi algo que os militares fizeram apenas na ditadura. Eles fizeram isso agora, quando gerenciavam o combate à pandemia, escondendo números, negando informações, impondo a indiferença às mortes como afeto social, impedindo o luto coletivo”.

Pensamento mágico

Este é um país “feito por séculos de crimes sem imagens, de mortes sem lágrimas, de apagamento”. A covardia do esquecimento “instaurou a Nova República e selou seu fim”: das catacumbas ressurge o fascismo, montado em Bolsonaro. A derrota eleitoral não faz desaparecer o que está acontecendo no país, se não for feita justiça. “Não há porque deleitar-se no pensamento mágico de que tudo o que vimos foi um ‘pesadelo’ que passará mais rapidamente quanto menos falarmos dele. O que vimos, com toda a sua violência, foi resultado direto de nossa anistia”.

Os crimes a julgar

Safatle lista então os principais crimes pelos quais devem ser responsabilizados Bolsonaro e seus gerentes “nos primeiros meses do novo governo, quando há ainda força para tanto”.

  • Genocídio indígena na gestão da pandemia.
  • 15% das mortes mundiais em 3% da população mundial contaminada.
  • Uso do aparato policial para impedir eleitores de votar.
  • Suporte a manifestações golpistas pós-eleições. “A polícia brasileira é hoje um partido político”.
  • “O pior de todos os crimes contra a democracia: a chantagem contínua das Forças Armadas contra a população. Forças que hoje atuam como um estado dentro do estado, um poder à parte”.

Democratizar a Segurança

“Espera-se do novo governo duas atitudes enérgicas: que coloque na reserva o alto comando das Forças Armadas que chantageou a República; e que responsabilize os policiais que atentaram contra eleitores brasileiros, modificando a estrutura arcaica e militar da força policial. Se isso não for feito, veremos as cenas que nos assombraram se repetirem por tempo indefinido”.

“Não há nada parecido a uma democracia sem uma renovação total do comando das Forças Armadas e sem o combate à polícia como partido político. A polícia pode agir dessa forma porque sempre atuou como uma força exterior, como uma força militar a submeter a sociedade”.

Fonte: UOL (acesse aqui)

Autor: Vladimir Safatle

Publicado em: 27/11/2022