José Almino de Alencar – Folha de S. Paulo – 01/02/23
“Questão militar” foi a denominação dada a uma sucessão de conflitos entre oficiais do Exército Brasileiro e a monarquia, que fortaleceu a campanha republicana entre os oficiais e cadetes na década de 1880 e culminou no golpe militar que implantou a República em 15 de novembro de 1889, cujo primeiro presidente foi um marechal do Exército.
Essa intervenção militar marca uma importante mudança em relação à fase monárquica, que não conheceu golpes, diferentemente do que ocorria na maioria dos países sul-americanos à época. Ao proclamá-lo, as Forças Armadas se tornaram, ao mesmo tempo, as fiadoras e defensoras do novo regime.
Militares na primeira Constituição
Desde a origem da República, portanto, a presença dos militares na cena política é “inevitável”, nas palavras do então deputado Felisberto Freire, de Sergipe, que assim se referiu à elaboração da Constituição de 1891: “Dos 205 deputados (havia ainda 63 senadores), 46 eram militares. É bem visível a falta de liberdade de que se ressentiram todas as discussões que afetaram a classe, por parte do elemento civil do Congresso”.
Precedente aberto: a defesa interna
A nossa primeira Constituição republicana inclui entre as atribuições das define as Forças Armadas a defesa interna da União e a “manutenção das leis no interior” (art. 14). Essencialmente funções exercidas pela forças policiais, elas ganham a mesma legitimidade e importância, para os militares, que a a defesa externa.
Note-se ainda a expressão “obediência dentro dos limites da lei” (art. 14). Para José Murilo de Carvalho, o trecho foi redigido por Rui Barbosa para conter o Executivo, mas depois serviu “para justificar todos os intervencionismos, pois parecia dar aos militares o poder de julgar a legalidade das ações do governo. Criou a República o que a Constituição Imperial buscou a todo o custo evitar: uma força armada deliberante”.
“Frente às manifestações monarquistas que apareciam ou eram temidas, […] um novo inimigo entra em cena: os inimigos da República”, escreve Maria Celina de Araújo.
Estabelece-se um “precedente que só fará se acentuar ao longo do século: a participação das Forças Armadas na manutenção da segurança interna, que hoje se chama garantia da lei e da ordem“. A Constituição de 1934 e a Constituição de 1946, nos seus artigos 17 e 77, respectivamente, retomaram os mesmo princípios da Constituição de 1891 no que se referia ao papel dos militares.
Poder moderador
Essa função tutelar sobre a “ordem republicana”, uma espécie de mandato autodesignado de poder moderador, emprestou às Forças Armadas uma importância referencial dentro dos conflitos, acomodações e mudanças na história do país.
Se, por um lado, a participação política para uma parte do oficialato era tida como algo apropriado e legítimo, por outro, os militares vieram também a ser o alvo de conspirações por grupos civis, que viam nessa eventual aliança um caminho para chegar ao poder. Esses personagens foram celebrizados em uma frase do marechal Castelo Branco: “São as vivandeiras alvoroçadas que vêm aos bivaques bulir com os granadeiros e causar extravagâncias ao poder militar”.
De todo modo, “o que pensam os militares?” e “como reagirão os militares?” foram indagações frequentes e aflitas entre os principais atores da vida pública brasileira no curso do século passado, que retornam agora com praticamente o mesmo vigor. Interrogativas, aliás, justificadas, tal a importância que as Forças Armadas tiveram em grandes mudanças ou agitações políticas e institucionais do nosso século 20.
Longa lista de intervenções
Ao procurar agir como uma corporação na esfera pública, as Forças Armadas eram inevitavelmente suscetíveis às divisões e conflitos trazidos pela política, o que explica a grande quantidade de iniciativas frustradas de levantes nas duas décadas que se seguiram à Constituição de 1946 até o golpe vitorioso de 1964, quando elas se apresentam enfim unidas.
Incluam-se aí, para os mais novos ou esquecidos, as revoltas tenentistas dos anos 1920, a Revolução de 1930, a instituição do Estado Novo, em 1937, o restabelecimento do regime republicano democrático em 1946, o manifesto dos coronéis do início de 1954, o papel da República do Galeão e da agitação em torno das acusações de corrupção que antecederam o suicídio de Vargas, o entrevero antes da posse de Juscelino Kubitschek, em 1955, que deu lugar ao “contragolpe preventivo” do general Lott, a insurreição contra a posse de Jango, que resultou em um regime parlamentarista improvisado e brevíssimo em 1961 — insurreição, aliás, que já preconizava o golpe de 1964 —, e, last but not least, o processo de abertura política, iniciativa do general Ernesto Geisel arrematada pela anistia de setembro de 1979, já no governo Figueiredo.
Militares na redação do artigo 142
O artigo 14 da Constituição de 1881 foi retomado pelo artigo 177 na Constituição de 1946 e ganhou lugar no artigo 142 da Constituição de 1988, agora formulado de maneira mais ambígua.
As Forças Armadas participaram das discussões da Comissão Afonso Arinos e tiveram papel decisivo na redação do artigo 142. Vigorava então a Constituição de 1967, obra do regime militar que, no seu artigo 92, conferia às Forças Armadas o papel de fiadoras das instituições governamentais: “Destinam-se as forças armadas a defender a Pátria e a garantir os poderes constituídos, a lei e a ordem”.
“Havia constituintes que não queriam admitir a hipótese do uso das forças para manter a lei e a ordem, hipótese que as forças, em especial o Exército, queriam constitucionalizada. O ministro almirante Sabóia mandou-me conversar com o senador Afonso Arinos. Depois de duas horas de conversa agradabilíssima, ele me perguntou qual a razão da visita. Expliquei-lhe que, embora todos preferíssemos não ter que usar a hipótese de intervenção interna, as forças achavam necessário consigná-las para esse fim porque ninguém poderia ter certeza de que isso nunca seria necessário. Ele prontamente rascunhou a fórmula adotada: ‘e por iniciativa de um dos poderes constitucionais, da lei e da ordem’, fórmula aceita sem problema pelas forças”, lembra o almirante Mário César Flores, então chefe do Estado-Maior da Armada, em testemunho para o livro Militares e a Política na Nova República (Maria Celina d’Araújo e Celso de Castro).
Assim a encontramos no artigo 142 da Constituição de 1988:
“As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.
Só o poder controla o poder
O ponto sensível permanece: as Forças Armadas se destinam à garantia da lei e da ordem. A inovação do artigo 142 foi atribuir a iniciativa de convocá-las a qualquer dos Poderes constitucionais: Executivo, Legislativo ou Judiciário.
Os Poderes são independentes ou, melhor, separados, o que implica a existência de mecanismos de controle mútuo, como o veto executivo, o controle de constitucionalidade pelo Judiciário ou o impeachment pelo Legislativo – para impedi-los de desenvolver uma lógica de expansão isolacionista.
No caso em que o chefe de Estado, o presidente, suspende por um período temporário a atuação dos Poderes Legislativo e Judiciário, a medida tem de ser aprovada por maioria de votos no Legislativo. Só o poder controla o poder.
Embora sendo comandadas pelo chefe do Executivo, de acordo com o artigo 142, as Forças Armadas poderão ser convocadas por qualquer um dos Poderes para intervir em defesa da lei e da ordem.
Se, por um lado, elas se veem explicitamente definidas como força executora, um instrumento eventual dos três Poderes, a ausência de mecanismos de controle ou de meios de revisão dessa convocação poderá conduzir a impasses.
O mais óbvio é se os abalos da lei e da ordem venham a tomar também a forma de um conflito entre Poderes, como assistimos no ano que terminou. Prevalece a função do comandante-geral das Forças Armadas sem o elemento de um controle, como o previsto pelo instituto do estado de sítio?
Aura de imprecisão
Mantém-se o principio da intervenção militar com uma aura de imprecisão quanto a sua última instância de responsabilidade. Abre-se um vácuo pronto a ser ocupado pela “vocação” de poder moderador, alimentada dentro da corporação pelo tempo e pela lembrança de numerosas intervenções desde 1889, cuja possibilidade vem inscrita em todos os textos republicanos, e acasalada pela prática secular de pensar a segurança do país nas suas escolas e centros de reflexão como um elemento de sua estrutura socioeconômica, cujo equilíbrio e orientação a corporação teria os meios de pastorear e dirigir.
Um texto de lei não abolirá golpes militares, mas daria legitimidade aos que a eles se opuserem, inclusive dentro das próprias Forças Armadas.
O que fazer com os militares?
Durante os 34 anos desta última fase democrática, os militares guardaram em uma espécie de silêncio obsequioso a crença nessa capacidade legítima de intervir (excepcionalmente) direta e, em última instância, unilateralmente no governo da República. Nesse sentido, a fórmula astuciosamente ambígua encontrada por Afonso Arinos favorece essa pretensão que tem sua origem na própria origem de nossa República.
Este parece ser o nó górdio da “questão militar” contemporânea. No mesmo período, o mundo civil a denegava, reprimindo-a na memória e na linguagem política.
Agora, pelo menos por um instante intenso, as forças que mantinham o recalque e o não dito explodiram subitamente. Tudo se passa como se os militares acreditassem que sabem e podem dirigir o Brasil, e o mundo político civil não tem ideia do que fazer com os militares. Acertar esse desacerto é trabalho longo, incerto, mas necessário para que um horizonte democrático mais estável seja possível.
Fonte: Folha de SP (acesse aqui)
Autor: José Almino de Alencar
Publicado em: 01/02/2023