Notícia de atuação militar nas eleições foi desmentida pelo TSE e Ministério da Defesa. Órgão que fomenta discurso de fraude adquiriu software espião em contrato suspeito.
Na noite de 11 de setembro, a Folha de S. Paulo publicou um “furo”: a três semanas do primeiro turno, as Forças Armadas anunciavam uma medida inédita em tempos democráticos: fariam uma “apuração paralela” das eleições, em uma amostra de 385 urnas. Horas depois, a reportagem revelou-se uma “barriga”, jargão jornalístico que corresponde a publicar notícia incorreta por/ falha de apuração ou mentira da fonte.
O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) emitiu nota negando que tenha autorizado qualquer apuração paralela. O presidente do tribunal, ministro Alexandre de Moraes, decidiu cancelar reunião marcada para o dia 13 com o ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira. O Ministério da Defesa, então, também negou: em nota, declarou que as Forças Armadas “não solicitaram qualquer permissão de acesso diferenciado em tempo real aos dados enviados para a totalização do pleito eleitoral pelos Tribunais Regionais Eleitorais (TRE)”.
Durante meses, os militares indicados para a Comissão de Transparência do TSE levantaram uma série de suspeitas sobre as urnas eletrônicas e alimentaram o discurso bolsonarista de fraude.
Segundo a reportagem da Folha, a “apuração paralela” caberia ao Comando de Defesa Cibernética do Exército. Seriam analisados, por amostragem, os boletins de votação expedidos por 385 urnas, e seus dados seriam comparados com os dos Tribunais Regionais Eleitorais (TRE). O general Heber Portella, comandante do órgão, foi “personagem-chave da crise entre o Palácio do Planalto, as Forças Armadas e o Tribunal Superior Eleitoral“, pois seus questionamentos na comissão municiaram os constantes discursos de Bolsonaro colocando em dúvida a lisura das eleições.
Foi também por meio do Comando de Defesa Cibernética que as Forças Armadas adquiriram, sem licitação e sem justificativa, equipamentos para hackear telefones celulares, extrair conteúdo de nuvens e e acessar dados de redes sociais, no final de 2021. Segundo apuração do repórter Paulo Motoryn, no Brasil de Fato, “o contrato tem digitais de Eduardo Bolsonaro e foi apontado pelo MPF como potencialmente lesivo ao processo eleitoral“:
“No quadro de executivos da empresa CySource [que fornece os equipamentos] está o analista de sistemas Hélio Cabral Sant’ana, ex-diretor de Tecnologia da Informação da Secretaria-Geral da Presidência da República no governo do presidente Jair Bolsonaro (PL). Porta-voz da CySource no acordo com o Exército, Sant’Ana também tem ligação próxima com o filho do presidente, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP). O analista de sistemas é dono do domínio do site do Instituto Conservador Liberal (ICL), presidido por Eduardo Bolsonaro”, e divulga diversas fake news sobre as eleições em suas redes sociais.
A quem interessa?
O caso levanta a lebre da atuação de agentes de desinformação entre os militares: qual é o interesse da fonte anônima em produzir uma notícia falsa sobre o papel das Forças Armadas na apuração eleitoral?
Para Marcelo Pimentel Jorge de Souza, coronel da reserva e ex-chefe do Estado Maior da 7ª Região do Exército, a finalidade da operação é consolidar e naturalizar o “protagonismo político das cúpulas hierárquicas das Forças Armadas”.
Nas palavras de Piero Leirner, antropólogo da UFSCar e especialista em pensamento militar, em postagem de de 20 de agosto: “O interesse deles com essa história é se colocar como fiadores finais de um processo que eles próprios ajudaram a desestabilizar, por uma via indireta. Esse tipo de ameaça é típica de quem está procurando obter vantagem em algum tipo de negociação. Nada disso se faz solto no éter: desde as primeiras semanas de 2019 a palavra de ordem foi insegurança cibernética, realizada ao longo desses anos, diga-se de passagem, pela propagação desenfreada da ideia de ‘ataque hacker’”.
Nas redes bolsonaristas, a “notícia” da Folha passou a circular fortemente, acompanhando a narrativa de que os militares serão os avalistas das eleições. Dizia a reportagem: “A expectativa de militares ouvidos pela Folha é que, na mesma noite em que o resultado for proclamado, já haja também uma conclusão da análise das Forças Armadas”.
Se a “contagem paralela” militar apontasse alguma inconsistência na análise dos dados, forneceria um incendiário argumento para o candidato derrotado alegar fraude nas urnas e seus seguidores armados se levantarem contra o “golpe”.
Fonte: Folha de SP (acesse aqui)
Autor: Cézar Feitoza
Publicado em: 12/09/2022