“ESTAMOS NO LIMIAR DA VIOLÊNCIA. SIM, AS INSTITUIÇÕES FUNCIONAM, ATÉ O DIA EM QUE AS PESSOAS COMEÇAM A SE MATAR.”

Bruno Pinheiro Wanderley Reis – Nexo – 21/11/22

Em entrevista a Malu Delgado, o cientista político Bruno Pinheiro Wanderley Reis, da UFMG, analisa os protestos golpistas, o momento frágil e arriscado da conjuntura política nacional, e prevê um cenário de tensão de longa duração, pois a crise emula retóricas e estratégias da extrema-direita internacional.

Convite à subversão

Se você não fizer nada, legitima. É mais do que um protesto político, porque é um convite à violência, à subversão armada e à violação do papel constitucional das Forças Armadas por pessoas reunidas, também irregularmente, em área de segurança, que é a porta do quartel. Bastava isso para não ser tolerável. E todas as circunstâncias indicam a complacência das Forças Armadas e das forças policiais com os atos.

Você não pode fazer uma passeata na porta do Exército. É área militar, portanto, área de exclusão para esse tipo de ação. No entanto, ficam ali, porque o Exército não se importa e deixa eles lá.

Vai ter golpe?

O cálculo político não é dar um golpe no dia da posse, nem impedir a posse. Eventualmente alguém vai querer coreografar algum tipo de manifestação, algum tipo de protesto. É uma uma guerra de guerrilha, um jogo de desgaste, de procurar deixar o eventual governo na defensiva, se explicando e encontrando contestação frontal nas ruas desde o primeiro dia.

O Exército está receptivo ao flerte golpista, mas eles não estão prontos para botar tanque na rua e dar golpe. Não é isso que vai acontecer. Eles estão seduzidos pelas prebendas de estar no poder, de ocuparem cargos na Esplanada. Mas sabem que isso tem perna curta e que expõe o próprio Exército a dificuldades políticas.

Para onde que esse jogo aponta? Esticarem isso diante da omissão das Forças Armadas e da omissão do presidente da República que as comanda, até que se troque o presidente da República. E deixam cair no colo do novo presidente a ação antipática, digamos, de fazer cumprir a lei. Vão dizer: ah, foi o Lula que proibiu manifestantes.

É bem claro o jogo de desestabilização.

Instituições funcionando?

A pergunta se as instituições estão funcionando normalmente não admite o binarismo, do sim ou não. As instituições têm procurado funcionar num ambiente hostil, o que não é irrelevante. E, sobretudo, procuraram penosamente funcionar nesses quatro anos sob um presidente hostil. Temos uma pessoa ocupando a função institucional crucial, de presidente da República, chefe de estado e de governo, que usando as prerrogativas institucionais dessa posição procura solapar o funcionamento de todas as instituições. Isso basta para ilustrar a complexidade do problema. Eventualmente instituições são utilizadas umas contra as outras.

Papel do TSE e do STF

Todo mundo está fazendo apostas. Ninguém pode se dar ao luxo de simplesmente ligar no automático um conjunto de procedimentos, porque estamos no limiar da violência.

O Supremo foi muito mais proativo do que deveria ter sido no período que vai de 2005 até 2018, quando cai a ficha de que estavam numa encrenca medonha.

Em 2022, o TSE tentou botar limites. Bolsonaro, muito mais do que qualquer outro governante, ultrapassou de longe todos os limites institucionais, porque não está nem um pouco comprometido com a legalidade. Se eles simplesmente fossem aplicar a letra da lei, impugnariam Bolsonaro, só que eles não têm como fazer isso em sã consciência sem botar em risco todo o processo, com 50% da população querendo votar nele. O TSE fez uma aposta: o melhor caminho ainda é você ter uma eleição que ela consiga acabar.

Não sei se todos os 11 [ministros do Supremo] têm clareza sobre esse momento. O Alexandre de Moraes tem, o Gilmar Mendes tem. Eles estão operando, informados por uma leitura política do quadro.

Seria melhor que os ministros do Supremo estivessem imunes. Seria melhor que o Supremo fosse percebido como externo a isso. Não é e não vai ser mais tão cedo.

Crise de longo prazo

Esse estado de coisas que provavelmente vai nos acompanhar por alguns anos, talvez décadas. Confesso que me correu um frio na espinha quando eu vi o primeiro apoio mais enfático a essas manifestações vindo da Fox News americana. Caíram algumas fichas. A gente tem um ecossistema informacional hoje que é caótico, segmentado.

A sensação de déjà vu é muito incômoda, as homologias formais entre processos análogos que se dão em variadas partes do mundo. É muito exasperante quando a gente lembra de 2013.

Influência internacional

Está muito claro que esse jogo é internacional, não se esgota nas fronteiras.

Há interesses fora do Brasil em desestabilizar alguns governos e encorajar outros. Bolsonaro é o cavalo em que alguns interesses externos influentes resolveram apostar suas fichas. Quando ele for inviabilizado, haverá um outro. E o repertório da confecção das bolhas e da desqualificação da ordem institucional vai ser mobilizado de maneira idêntica, de novo.

A lógica da desinformação tem a ver com isso. Você tem que desqualificar a institucionalidade, e por isso precisa criar uma bolha de ressonância de desinformação que produz desconfiança com todo o establishment: você desconfia de vacina, da OMS, de tudo, vai pelo negacionismo, desqualificando a ordem internacional como globalista, comunista, gayzista.

A eleição do Lula vai ser permanentemente acusada de ter sido roubada, vamos ouvir isso para o resto da vida, da mesma maneira que os americanos ouviram indefinidamente que Obama era muçulmano. É a mesma coisa, a mesma turma, os mesmos interesses.

Examinar com realismo as perspectivas de evolução da cena política brasileira nos próximos anos exige que a gente incorpore essa dimensão. Enxergaríamos melhor, desde 2013, se tivéssemos incorporado isso.

O fator Lula

Algo que modifica a equação, neste momento, é que o Lula é um pop star do multilateralismo. Todo o aparato institucional, da governança global multilateral, ama Lula. Talvez nenhum outro líder com a mesma capacidade de projeção abrace tão enfaticamente as instituições e os procedimentos multilaterais internacionais, mesmo quando os critica.

Lula vocaliza de maneira eficaz uma adesão à ordem institucional internacional e ao multilateralismo que se contrapõe à Fox, à rede do [Rupert] Murdoch, a esses caras que têm em Trump uma voz nesse momento, com repertório estratégico de desqualificação.

Lula, com seu jeito confiável e relativo sucesso na vocalização de interpelação, pela esquerda, da ordem multilateral, se tornou um inimigo. O petismo virou o alvo a ser abatido. Isso aconteceu de 2013 a 2019, mas teve a reviravolta, e teve a reviravolta também nos Estados Unidos… Eu não consigo mais pensar o caso brasileiro isoladamente.

Futuro da extrema-direita

Uma parcela larga do Brasil está doidinha por um ditador. Nossa sorte é que o Bolsonaro não parece apto, ele não consegue entregar isso pessoalmente. Talvez outra pessoa acabe fazendo isso. Ou talvez simplesmente a direita que emerge, puxada por Bolsonaro, acabe se reorganizando em torno de outra liderança de maior alinhamento institucional.

Vem uma direita mais intolerante, mais autoritária nos costumes, com componentes religiosos. Dá até para imaginar uma direita, ainda que mais dura do que o tucanismo paulistano, competitiva eleitoralmente, com grande voto evangélico, com simpatia em setores militares, como militares reformados liderando, sem ser necessariamente golpista. Mas o jogo que está sendo jogado nesse momento é o da desestabilização potencialmente violenta da cena política.

Fonte: Nexo (acesse aqui)

Autor: Bruno Pinheiro Wanderley Reis

Publicado em: 21/11/2022