Vladimir Safatle – Revista Cult – 10/01/23
O mais singular sobre a invasão da Esplanada dos Ministérios é que sabíamos que ela ocorreria, mas simplesmente não estávamos preparados. Como se o fato de acreditarmos em nossos desejos fosse suficiente para mudar a realidade.
Bolsonaro não foi um ponto fora da curva, o Brasil não “voltará ao normal”, o fascismo nacional não está isolado. Isso se chama: princípio de realidade.
O que se viu no último domingo foi um ato cuidadosamente montado, com apoio explícito da polícia militar, das Forças Armadas e de governadores da extrema-direita. Um ato nacional que alcançou realizações simbólicas enormes, como invadir o cerne do poder e se impor como força popular. Ato que se articulou ao bloqueio de refinarias e de estradas. Ou seja, algo que necessita de meses para ser organizado e financiado. Algo que tem um nome técnico bastante preciso: tentativa de golpe de Estado.
Outros virão
O fato de ser uma “tentativa” não significa que ela foi uma “mera” tentativa. A função inicial da ação foi desestabilizar o governo, mostrar sua fragilidade, impulsionar novas ações, produzir vitórias simbólicas que irão alimentar o imaginário insurrecional do fascismo brasileiro. Em bom português: esse foi apenas o primeiro capítulo. Outros virão. Nesse sentido, tudo foi extremamente bem-sucedido.
Estamos no meio de uma insurreição fascista em várias etapas. Se lembrarmos, por exemplo, de 7 de setembro de 2021, encontraremos a mesma massa mobilizada, caminhoneiros bloqueando estradas e por fim um recuo. Qual foi a análise da época? Bolsonaro não conseguiu o que queria, seus apoiadores foram presos, ele está desmoralizado, ele acabou.
Bem, depois disso, ele quase ganhou a eleição presidencial e agora seus apoiadores fizeram algo que fez a invasão norte-americana do Capitólio parecer ensaio de colegial. Ou seja, o processo não parou, ele se consolidou e agora irá se desdobrar em várias frentes.
Destruir o sistema civil-militar
O início dessa catástrofe deve ser procurado na anistia que selou o começo da Nova República. Longe de ter sido um acordo nacional, ela foi uma extorsão produzida pelos militares. Não se anistiam crimes contra a humanidade, como tortura e terrorismo de Estado.
Quando o país repete agora “Sem anistia”, é para recomeçar o Brasil sem os mesmos erros do passado. Essa exigência de justiça não visa apenas o sr. Jair Bolsonaro. Antes, ela visa todo o sistema civil-militar que compunha o verdadeiro eixo do governo. E visar o sistema significa destruí-lo. Não apenas colocar indivíduos na cadeia, mas decompor as estruturas de poder que submetem a democracia brasileira a uma chantagem contínua, que submeteram o povo brasileiro a gestões criminosas durante a pandemia.
Dissolução da PM
O que ocorreu no domingo não se resolverá com prisões, embora sejam necessárias. Exige duas ações centrais. A primeira é a dissolução da polícia militar. A polícia militar brasileira não é uma polícia de Estado, é uma facção armada. Não será afastando um ou dois policiais que algo vai se modificar.
Afastar o alto-comando
A segunda ação consiste em afastar o alto-comando das Forças Armadas e colocá-lo na reserva. O que vimos domingo foi simplesmente inimaginável em qualquer democracia: as Forças Armadas impedindo com tanques que a Força de Segurança Nacional entrasse na área em frente ao Quartel-General, em Brasília, para desalojar fascistas. Isso já configura uma força militar em insubordinação contra o presidente da República.
As Forças Armadas passaram os últimos quatro anos chantageando a República, colocando em questão a segurança das eleições. Elas tomaram o Estado brasileiro de assalto, colocando mais de 7.000 de seus membros em postos de primeiro e segundo escalão, para gerir o Estado de acordo com seu grau de incompetência e insensibilidade.
Irrealista é a realidade
Alguns podem achar tais proposições irrealistas. Eu diria que irrealista é a realidade na qual nos encontramos agora. Não é possível ter um governo que conviva diariamente com forças que procuram demovê-lo. É isso que acontecerá se não agirmos de maneira contundente nos primeiros dias do governo Lula. Tudo está muito claro a partir de agora. Que não nos contentemos mais uma vez com ilusões.
Fonte: Revista Cult (acesse aqui)
Autor: Vladimir Safatle
Publicado em: 10/01/2023