“E SE O ‘ATAQUE’ VIER DE DENTRO? O INTERESSE DOS MILITARES É SE COLOCAR COMO FIADORES FINAIS DE UM PROCESSO QUE ELES PRÓPRIOS AJUDARAM A DESESTABILIZAR.”

Piero Leirner – Twitter – 20/08/22

Antropólogo da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e especialista em pensamento militar, Piero Leirner disponibilizou em seu perfil no Twitter a transcrição na íntegra de uma entrevista concedida à BBC News Brasil e utilizada em parte na reportagem “Independentemente do presidente eleito, militares não abrirão mão do espaço conquistado, dizem pesquisadores“.

A edição final deixou de fora várias de suas considerações sobre os movimentos das Forças Armadas em torno da questão urnas eletrônicas.

“E se o ‘ataque’ vier de dentro?”, pergunta o pesquisador. “Toda a preocupação do TSE foi em enunciar um ataque hacker do ‘exterior’, mas se o gerador da criptografia for interno, será que o TSE corrigiu esse (e outros) pontos? Será que deixou claro para todo mundo que o “gerador interno” é uma empresa do sistema de Defesa (Kryptus EED)? E que portanto se houver problema ele tem endereço? Não por acaso, está no mesmo lugar de quem o enuncia”.

Leirner começa por fazer uma contextualização histórica do tema no meio político nacional, e lembra que o voto impresso sempre foi uma pauta da esquerda. “E nem precisamos recuar até o problema de Brizola com o Proconsult etc. Pode saltar para depois, em 2009: isso era uma ideia que partiu do governo Lula, derrubada por pressão sobretudo do MPF. Depois foi retomada e em 2015 aprovada no Congresso com o voto de toda a esquerda, e transformada na lei 13.165 de 29 de setembro de 2015, cujo artigo 59 determina que ‘no processo de votação eletrônica a urna imprimirá o registro de cada voto, que será depositado de forma automática e sem contato manual do eleitor em local previamente lacrado’. A nova urna foi apresentada e celebrada, mas em 2017 o STF derrubou a lei com a alegação principal girando em torno do aumento de custos”.

“O assunto aquietou por um ano e de repente Bolsonaro assume para si essa pauta. O que ele faz em 2018, logo após o primeiro turno? Começa a ventilar a ideia de fraude. Mas qual era o slogan petista até fins de agosto de 2018? ‘Eleição sem Lula é fraude’. Quando Bolsonaro sequestra essa noção, ele desloca Haddad para a posição de fiador tanto do TSE e da Justiça em geral quanto dos resultados eleitorais. Todo o discurso do PT contra a Justiça começou a ser neutralizado ali. Isso serviu de ‘laboratório’: Bolsonaro produziu um deslocamento, e posteriormente estendeu a ação para uma briga emulada com o STF e passou a colocar a Justiça – especialmente as instâncias superiores – como cúmplice de Lula, do PT etc. O problema com as urnas que veio depois é um desdobramento disso”.

A partir desse panorama geral, o pesquisador passa a avaliar o embate atual dos militares com o sistema eleitoral.

“Em todos esses questionamentos sobre as urnas, nenhum deles toca em ponto sérios, especialmente dois: o primeiro, que metade das urnas são fabricadas pela Positivo Informática, empresa ligada ao senador Oriovisto Guimarães, o que coloca no mínimo um conflito de interesses a ser pautado; o segundo, que as próprias Forças Armadas estão pelo menos indiretamente envolvidas no software das urnas por exemplo com a Kryptus, ‘Empresa Estratégica de Defesa’, ligada às Forças em vários projetos. Um questionamento sério comprometeria o próprio pressuposto levantado”.

Mas por que, então, os militares colocariam sob holofote um sistema que eles próprios, em tese, poderiam manipular?

“Imagino que esse estardalhaço já seja uma maneira de controlar o processo. Toda a política hoje está indexada nessa questão, e de um jeito ou de outro os militares já se colocaram como fiadores. A questão agora é só esperar para ver se Bolsonaro vai emular algo mais chocante do ponto de vista cênico e se estes mesmos fiadores se apresentarão como ‘tábua de salvação’ da democracia.

“Note que, o tempo todo, quando há referências a militares sobre tais atitudes, eles são referidos como ‘militares bolsonaristas’. A tática principal é sempre grudar o adjetivo ‘bolsonarista’ em cada coisa disfuncional. Qual é o efeito disso na percepção? A ideia de que existe um outro lado, a tal ‘tábua de salvação’. Essa estratégia, em termos militares, é o que podemos chamar de ‘movimento de pinça’. Para essa percepção funcionar é preciso fazer uma terapia de reforço cognitivo cotidiana, ventilando na imprensa e em outros meios que basta um general se aproximar de Bolsonaro que ele está ‘magnetizado’. É preciso produzir a percepção de que Bolsonaro é o grande articulador e fonte do problema, e não quem de fato construiu a posição dele desde o início.

Com o problema das urnas não seria diferente, só que a dose agora é cavalar, porque a eleição exige que se aumente a tensão. Se você tem um general colando nesse discurso de Bolsonaro, isso soa como golpe, mas na minha opinião é um ‘golpe de vista’ mais do que qualquer outro. Porque – é preciso frisar isso – as questões levantadas são laterais. As urnas, como qualquer sistema de engenharia, podem ter pontos falhos, o que não significa que elas necessariamente vão ‘falhar’. Há artigos sérios tratando disso – e nem Bolsonaro nem qualquer militar levantaram os pontos que eles tratam”.

Por trás de toda essa movimentação militar, portanto, está um projeto de poder para além de Bolsonaro.

“Essa é uma tática, dentro da estratégia de se manter como um ‘centro de Governo’: depois de Bolsonaro – seja em curto prazo, ou longo, pois a ‘pinça’ prevê justamente vitória em qualquer circunstância – eles continuam gerenciando o ‘sistema operacional’ da política.

“O interesse deles com essa história é se colocar como fiadores finais de um processo que eles próprios ajudaram a desestabilizar, por uma via indireta. Esse tipo de ameaça é típica de quem está procurando obter vantagem em algum tipo de negociação. Nada disso se faz solto no éter: desde as primeiras semanas de 2019 a palavra de ordem foi insegurança cibernética, realizada ao longo desses anos, diga-se de passagem, pela propagação desenfreada da ideia de ‘ataque hacker’.

“Lembrando que a percepção que se construiu a respeito da virada ontológica do STF sobre a Lava Jato foi devido à “Vaza Jato”. Isso ressaltou exatamente aquilo que os militares desejavam, que era estampar Lula como amigo dos juízes. Agora essa é uma situação quase consolidada, e poderemos ver muita gente surfar em cima dessa onda. Ainda que as pesquisas estejam apontando para um lado, há elementos de construção da opinião pública que vão atravessar as eleições e entrar no mandato que vem. É sempre bom lembrar quem ganhou em 2014 e o que aconteceu logo depois.

“Bolsonaro é um para-raio que eles plantaram no terreno. Por enquanto eles não perderam nada, as pesquisas de opinião que mostram uma certa queda na confiança estão na margem tolerável de ‘baixas de guerra’. Para viabilizar seus projetos próprios passaram a fazer lobbies e infiltrações em vários setores, do Congresso ao Judiciário, de organizações empresariais a setores da imprensa.

“Isso é algo que pode ser visto inclusive como uma mudança de patamar geracional da ‘teoria da Guerra’ (com G maiúsculo mesmo, uma coisa abstrata), que de uns tempos para cá passou a ser pensada plasmada a outros campos da vida social, especialmente o direito e a política. A partir daí se constroem redes mas também dispositivos legais, parcerias etc. Militares vão para órgãos de auditoria, desembargadores vão dar aulas em Escolas Militares, por exemplo. Sem falar em laços de parentesco amizade etc. Este é um campo vasto do qual mal vemos a ponta do iceberg”.

Para quem deseja saber mais sobre as vulnerabilidades no software das urnas eletrônicas, Piero Leirner recomenda o vídeo de uma palestra de 2018 do professor Diego Aranha, do Instituto de Computação da Unicamp.

Fonte: Twitter (acesse aqui)

Autor: Piero Leirner

Publicado em: 20/08/2022