“O PÓS-ELEIÇÃO MARCOU, AO MESMO TEMPO, UMA DERROTA POLÍTICA E UMA VITÓRIA SOCIAL DO BOLSONARISMO.”

Rodrigo Nunes – Folha de S. Paulo – 11/01/23

Professor da Universidade de Essex e da PUC-Rio, autor de Do Transe à Vertigem: Ensaios sobre Bolsonarismo e um Mundo em Transição, Rodrigo Nunes comenta o novo estágio da extrema direita no país.

Jogo de duplicidade

Desde que trolls e militares passaram a ocupar cada vez mais espaço na política nacional, normalizou-se um jogo de duplicidade em que era admissível que figuras públicas apoiassem ideias e ações extremistas, contanto que simulassem uma retratação no dia seguinte, e que oficiais de alta patente assumissem posição política, contanto que as Forças Armadas emitissem notas assegurando respeitar sua missão constitucional.

A diferença entre o que o indivíduo privado pensa e o que a instituição pública faz importa pouco em situações em que a inação institucional é suficiente para permitir que alguns façam do terror um meio para atingir seus fins.

8 de janeiro: divisor de águas

Depois do 8 de janeiro, apoiar explicitamente o golpismo deixou um custo alto demais para atores que, por mais que sejam simpáticos à base, têm algo a perder, como parlamentares eleitos e militares. Sem esses, a base bolsonarista não tem os instrumentos institucionais necessários para alcançar o que almeja.

Politicamente, o bolsonarismo se desarticulou e viu seus principais interlocutores tomarem distância, ainda que continuassem fazendo acenos à base. Socialmente, ele demonstrou um poder ímpar de gerar adesão e compromisso em parte expressiva da população.

Novos líderes

Bolsonaro abdicou da liderança explícita do movimento golpista. Há meses ele não lidera publicamente suas tropas, exceto na imaginação dos seguidores mais fanáticos, que leem em seus silêncios constrangidos e afirmações vagas profundas mensagens em código.

Quem está à frente das mobilizações dos últimos meses, então? A nova extrema direita global tem uma estrutura semelhante aos esquemas de pirâmide. Ao contrário do fascismo histórico, que se apoiava em movimentos hierárquicos de perfil paramilitar, ela depende de enxames de empreendedores políticos, para quem as redes sociais são instrumentos para acumular simultaneamente influência e ganhos financeiros.

É provável que vejamos, nos próximos meses, uma corrida para reivindicar um pedaço do espólio político de Bolsonaro mediante a criação de uma extrema direita “moderada”, disposta a aceitar mediações institucionais e comprometida (ao menos a médio prazo) com o jogo democrático.

Extremismo e violência

O segmento que foi às ruas no domingo continuará existindo, e a repressão e a perda de interlocução tendem a radicalizá-lo ainda mais. O que é pior: não faltarão oportunistas para explorar esse filão.

O risco de isso virar uma massa à espera de líderes ainda mais extremos — e um caldo de cultura em que a violência estocástica de “lobos solitários” vai fermentar permanentemente — é alto.

Se há algo que aprendemos nos últimos anos é que poucas coisas são mais perigosas que pessoas majoritariamente brancas e do sexo masculino sentindo-se traídas e impotentes.

Manter esse setor aceso apesar das chances cada vez menores de sucesso é, para esse escalão intermediário, uma forma de conservar a própria base diante do risco de esfarelamento, ao mesmo tempo que se cacifam para representá-la em voos futuros.

Os acampamentos golpistas e os atos do último fim de semana são o encontro entre dois tipos de desesperados sem muito a perder: os oportunistas querendo espremer as últimas vantagens dos tempos de vacas gordas e os atormentados para quem o fim da fantasia equivale ao fim do mundo.

“Desbolsonarizar” o Brasil

Bolsonaro é menos causa que sintoma: um produto da cultura de nosso aparato de segurança e de traços extremamente disseminados em nossa sociedade. “Desbolsonarizar” o Brasil implica, assim, muito mais que investigar os crimes do último governo e afastar seus simpatizantes do poder.

Significa repensar radicalmente a formação de nossas polícias, começando por sua desmilitarização, e a formação de nosso oficialato e Estado-Maior. Significa confrontar as desigualdades e preconceitos de raça, gênero e classe e encontrar respostas para o ressentimento social e a solidariedade negativa de que se alimenta a extrema direita.

Significa, finalmente, entender que o sentimento antissistêmico difuso de que a extrema direita soube se apropriar na última década é a expressão de um presente atravessado por diversas crises —econômica, de legitimidade política, do ambiente em que vivemos— que permanecem sem solução.

Fonte: Folha de SP (acesse aqui)

Autor: Rodrigo Nunes

Publicado em: 11/01/2023