Ronaldo Lemos – Folha de S. Paulo – 08/10/22
Professor das Universidades de Columbia (Nova York) e Tsinghua (Pequim) e fundador do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS), Ronaldo Lemos comenta a incapacidade dos institutos de pesquisa tradicionais de detectar o que se passa na cultura política contemporânea.
Na pós-modernidade fluida da sociedade em rede, é a extrema-direita quem dá as cartas, enquanto esquerda e centro patinam em sentimentos nostálgicos que já não repercutem na opinião pública.
Erros das pesquisas
“Uma das principais razões é a forma como a ideologia se manifesta na sociedade em rede. Os institutos de pesquisa, enquanto grupos que atuam dentro de padrões científicos tradicionais, não possuem a flexibilidade e adaptabilidade necessárias para lidar com uma sociedade líquida, em permanente fluxo.
O fato é que esses institutos foram inseridos em circuitos ideológicos. Para uma parte significativa do eleitorado, eles são instituições políticas, que precisam ser combatidas, atacadas, enganadas e dissuadidas. Então, a tese de que o campo ideológico da direita radical “se recusa a responder” precisa ser qualificada.
Não é bem isso o que acontece. Os institutos de pesquisa não são páreos para os modelos de organização em rede que esse campo ideológico sabe articular como ninguém. Presos a métodos puramente quantitativos, os institutos são facilmente ofuscados por um campo político coeso, bem-organizado e articulado permanentemente em redes de comunicação digital.
É errado achar que existem eleitores individualizados que se recusam a responder pesquisas. Existe, na verdade, um grupo ideológico composto de milhões de pessoas que se articula há anos para rejeitar os institutos de pesquisa e se blindar contra a atuação deles”.
Não por acaso, o instituto de pesquisas que mais se aproximou do surpreendente resultado das urnas, Atlas Intel, utiliza um método nada convencional de coleta de dados: em vez de entrevistas presenciais (como as do IPEC e Datafolha), aplica questionários randômicos pela internet.
Política gamificada
Para Ronaldo Lemos, o embate político “assemelha-se cada vez mais aos jogos de realidade alternativa (ARGs, na sigla em inglês). A ação política foi gamificada. O tabuleiro em que se joga é a própria sociedade. Por meio de arranjos sociais formais e informais que acontecem em diversas plataformas na rede, a ideologia se concretiza e se transmuta em ação coletiva coordenada. Uma vez que corações e mentes são conquistados para o discurso da realidade alternativa, torna-se então muito fácil coordenar de forma centralizada a ação de grupos vultuosos de pessoas.”
O Brasil paralelo das redes
“Uma das principais conquistas ideológicas empregadas pela direita radical é disputar o próprio campo da realidade. O feito é espantoso. A adesão de quase metade dos brasileiros medida pelas urnas repousa sobre um leito muito bem-construído de novas narrativas, que possuem arcos bem-delineados e aproximam-se dos trabalhos de ficção épica.
Recontam, por exemplo, a história do Brasil à luz de uma perspectiva ideológica completamente distinta. Com relação ao presente, têm a perspicácia de incorporar as culturas digitais vivas e pujantes, como games, fóruns da internet e subculturas da rede (aliás, cada vez mais importantes para a formação de opinião).”
Pertencimento e projeto de futuro
“Por mais que se discorde das premissas, do diagnóstico, das propostas e da ideia de futuro (distópica), há de se concordar que essa articulação de uma meganarrativa tem um poder persuasivo extraordinário. Em um momento em que os indivíduos no Ocidente (e no Brasil) estão cada vez mais atomizados, individualizados e isolados de estruturas sociais, essa narrativa dá um sentido ao mundo e uma coesão social para quem adere a ela.
Funciona, inclusive, como uma nova linguagem, com significantes e significados próprios, que é compartilhada por seus participantes, aumentando o senso de coesão.”
Direita vanguarda, esquerda conservadora
“A direita radical representa a vanguarda ideológica e comunicacional no Brasil e em boa parte do Ocidente. O centro e a esquerda são hoje essencialmente movimentos conservadores. Querem preservar instituições do jeito que elas são, como os institutos de pesquisa.
Para se contrapor à direita radical, é preciso disputar o lugar da vanguarda. Isso não acontece hoje. Apenas o passado (nostalgia) e o presente (reações do dia à dia) estão em disputa. No território do futuro, a direita radical está voando solo como vanguarda, conectada a lugares e mídias que estão tecendo o futuro”.
Já usou os stories do WhatsApp?
“Boa parte da formação de opinião tem sido feita em canais ainda pouco compreendidos, que incluem o TikTok, o Kwai, o Telegram, o Discord e, muito importante, os stories do WhatsApp” – Lemos enfatiza que essa ferramenta tem sido um dos pilares da campanha eleitoral, junto com o próprio WhatsApp.
Fonte: Folha de SP (acesse aqui)
Autor: Ronaldo Lemos
Publicado em: 08/10/2022