Paulo Arantes – Folha de S. Paulo – 11/03/23
Em entrevista para o podcast Ilustríssima Conversa (também transcrita na íntegra), o filósofo Paulo Arantes, professor da USP, analisa a força do bolsonarismo e considera que o governo Lula já terá tido sucesso se conseguir adiar a volta da extrema-direita ao poder.
Estamos mais perto de uma guerra civil do que do restabelecimento de uma democracia minimamente funcional. Vivemos um “caos terminal” que reflete “o fim de linha do capitalismo global”, anunciado pelo próprio Arantes duas décadas atrás.
“Esse é o futuro, esse desastre é comum, e o que se faz diante disso? As soluções clássicas estão ultrapassadas: socialistas, social-democratas, de gestão liberal… aí não tem solução. Liberal simplesmente é tocar um negócio e de maneira pragmática, fazer o retorno do investimento existir. Tudo bem, a menos que o planeta exploda antes”.
Alguns trechos:
Israelização do mundo
Pensando no Bolsonaro ou no fato de que foi o primeiro governo estritamente de extrema-direita que o Brasil constituiu: o bolsonarismo é uma parte relevante de um surto de extrema-direita inédito em relação, inclusive, ao fascismo histórico, e que aparece em vários lugares ao mesmo tempo. No poder, apareceu em primeiro lugar nas sociedades pós-soviéticas como a Hungria, a Polônia, a República Tcheca, a Eslováquia, Bulgária, Romênia. Aparece por lá não por acaso, tem que ver com a era soviética. E também em outros lugares. Poderíamos falar, por exemplo, em israelização do mundo.
Se, nesse momento, eu disser onde é que a extrema-direita no poder está prestes a dar um salto mortal no escuro, é Israel. Uma extrema-direita apoiada por uma classe social relegada, que são os imigrantes judeus que vieram do norte da África e do Oriente Médio. Não é uma extrema-direita ditatorial que se impõe pelo poder das armas, é uma direita popular.
Há vários capítulos dessa direitização do mundo desde os anos 1990, os anos 10 deste século, várias ondas até culminar no Trump, no Brexit, depois no Orbán, no Erdogan, no Bolsonaro, na última encarnação do Netanyahu e por aí vai, sem esquecer da grande reviravolta hinduísta do Modi, na Índia. Um artigo da Lúcia Guimarães na Folha diz que a Flórida de Ron DeSantis é uma Hungria com crocodilos. A Flórida já é uma pequena Hungria, já é um Israelzinho.
O Bolsonaro é um elo dessa cadeia, um elo proeminente, quase ganhou a sua reeleição. Agora ele está meio na berlinda pelos fiascos que cometeu, pode ser estratégico ou pode ser simplesmente incompetência — e, se for incompetência, será substituído. Mas o bolsonarismo, a extrema-direita brasileira com força, está aí e é protagonista dessa faixa toda.
Revolução do jagunço
Miguel Lago e Rodrigo Nunes me parecem os que têm mais ideias originais a respeito do que é o bolsonarismo fora dos clichês tradicionais sobre extrema-direita, fascismo, obscurantismo, clichês também sobre os evangélicos.
Gabriel Feltran foi o primeiro a escrever: “Olha, é um movimento popular, vem de baixo”. A classe média e a classe média alta estão surfando nessa reviravolta popular, que ele chama de revolução do jagunço, empoderamento dos intermediários. Uma rebelião que aconteceu na periferia e é enquadrada por pastores, por policiais. É o empoderamento das forças policiais, das organizações coercitivas, sejam oficiais ou não oficiais. Pode ser uma milícia, a Polícia Militar, a Polícia Civil, a Polícia Rodoviária, podem ser muitas coisas. É o homem forte que parasita uma sociedade e uma economia que tende a ser, nos seus polos, uma economia de pilhagem.
Soma de pequenas delinquências
Nós temos uma peculiaridade: a pequena delinquência. Tem que ver com a América Latina: não há um acre quadrado que não esteja envolvido em ilegalismo de toda sorte. O México é um narcoestado, a América Central não existe mais, é um corredor de passagem, barbarizada, um corredor polonês de imigrantes com pequenas fortalezas que são ditaduras, como a da Nicarágua, ditaduras ensandecidas. O Panamá é um pouco uma espécie de estação de respiro, porque tem as rendas do canal. Ora, esse país que desce do México e vai até a Patagônia passa pelo Brasil, pela Colômbia, está agora pegando fogo no Peru.
Quando chega no Brasil, há uma ramificação dessas pequenas delinquências que, somadas, podem devastar uma Amazônia, podem dirigir os rumos do agronegócio, podem financiar uma destruição de Brasília, mesmo que sejam pequenos empresários que fretam ônibus, mas os pontos todos se ligam. O diferencial do Brasil é que a família governante fazia parte dessa rede de delinquência, e a joia da coroa, com o perdão do péssimo trocadilho, aconteceu nessa semana. É um negócio inacreditável uma família presidencial de contrabandistas, ligando militares, Poder Executivo, Receita Federal, todos empenhados. É pequena delinquência, só que essa pequena delinquência somada devasta um país.
Guerra em Roraima
O que está acontecendo em Roraima? Roraima é um estado do garimpo, dos arrozeiros e é uma base militar. Garimpo pequeno, grande, médio, igualmente predadores, militares e políticos formam um bloco só.
O que nós vamos fazer? Vamos tirar os garimpeiros de lá. O que significa tirar os garimpeiros de lá? É uma espécie de supercracolândia. Os progressistas que ganharam as eleições estão transformando aquilo em um simulacro de guerra contra as drogas. Se quiser, pode até haver financiamento e inteligência militar americana para combater o garimpo ilegal, pois interessa a preservação da Amazônia. Mas são 50 mil pessoas no sistema da garimpagem, 90% é povo descartado por essa brasilianização do capitalismo que aconteceu há 25, 30 anos atrás. O que se faz com esse povo descartado? É como o pessoal do tráfico nas favelas das grandes aglomerações brasileiras, é uma carreira, é um emprego.
É o povo, é caboclo, é população ribeirinha, são indígenas que estão lá nessa garimpagem. O que você vai fazer? Vai matá-los? Vai expulsá-los? É como a guerra interminável às drogas nas periferias, é uma indústria. Tudo interessa ali, menos acabar com as drogas. A guerra às drogas alimenta meio mundo, das milícias a senadores, sem falar nos grandes traficantes que nunca estão aqui, estão no resto do mundo.
Essa é a particularidade do Brasil neste momento de desintegração: nós voltamos a ser o futuro do mundo graças à Amazônia, só que a Amazônia já está corroída por isso. Não adianta ficar com satélite monitorando o desmatamento e conseguir fundos alemães e noruegueses para manter uma sociedade de baixo carbono. Em regiões que vão viver de quê?
Militares sublevados
A estratégia [do governo Lula] é redução de danos. Nós sentimos na pele o alívio da vitória do Lula, apertadíssima como foi, uma proeza porque ele lutou com forças adversas, um Poder Executivo do Estado delinquente, com Forças Armadas, a média da magistratura, enfim, tudo o que nós sabemos.
Mas foi uma vitória assegurada porque o Biden e parte da Europa Ocidental tinham interesse em que ele ganhasse, e [sabiam] que o Bolsonaro era uma roubada. Foi o que segurou os militares, o pragmatismo. Militares, por definição, são golpistas e, mais ainda, são bolsonaristas. Os americanos mandaram n recados: “Olha, não avança o sinal porque nós fechamos a torneira de vocês, vocês vão ser um câncer ou serão párias mundiais”. O nosso atual ministro [nota do editor: pretendia se referir ao comandante do Exército?] é apenas um legalista por conveniência. Disse, com todas as razões, que não havia possibilidade de golpe porque seria uma loucura. “Nós estaríamos no ostracismo imediatamente em 48 horas, insustentável. Nós teríamos que governar e nós não sabemos governar. Nós viemos aqui para outra coisa, para ganhar um salário de 1 milhão”, era para isso que eles estavam aí.
[O governo Lula] não tem as Forças Armadas. As Forças Armadas estão sublevadas. Elas estão sendo compradas, subornadas, não existe controle civil, e os militares têm programa. Esse programa é o mesmo de 1964. Veja tudo o que eles escreveram sobre Amazônia. Eles têm ideias sobre a Amazônia, sobre índios, quem são as novas ameaças, e por aí vai.
Lulismo: anteparo à destruição
O lulismo foi um anteparo para a destruição inerente ao capitalismo nesta fase atual destrutiva, em que ele destrói o seu próprio fundamento, que é a fonte do valor, o trabalho vivo. O capitalismo não acaba por si mesmo, ele vai continuar a destruir, mas o mundo acaba antes. Esse é um prognóstico.
O primeiro governo Lula comprou tempo para postergar esse ajuste de contas que será feito no fim. Irrigou as periferias de empregos, de dinheiro, programas sociais muito bem planejados e desenhados, “best practice” no mundo inteiro. Você pega a cracolândia e reduz danos. É ótimo, ninguém é contra, precisa ser muito energúmeno, de extrema-direita, para passar o trator em cima.
Até que veio o bolsonarismo e destruiu esse anteparo de gestão do caos terminal no qual nós vivemos, que se chama capitalismo. O bolsonarismo apressou o fim do mundo. O pesadelo bolsonarista é a pressão para que o reino da delinquência, portanto o mais forte, da milícia ao presidente da República, passem a mão naquilo que lhes convém. Pode ser uma farinha de cocaína, pode ser uma joia do rei da Arábia Saudita. Está tudo no mesmo bolo da rapinagem. Era isso que estava acontecendo e, portanto, o grande capital achava que ia tirar sua lasquinha também, porque para ele não teria mais limites, mas viu que teria limites.
Qual é a possibilidade de o lulismo, entre aspas, “dar certo”? Adiar cada vez mais a volta da extrema-direita, que está aí preparando-se para voltar.
A volta do golpismo
Fizeram um ensaio geral: pela primeira vez, um governo com uma semana teve uma tentativa de golpe de Estado, meio tabajara, porque os militares pensaram duas vezes, tinha o veto internacional, diplomático, então eles deixaram o pessoal no sereno.
Eles estão reforçando os escalões médios do antigo bolsonarismo, que vão começar a se auto-organizar. Pode apostar: os 1.500 que vão sair da Papuda, processados ou não, vão sair radicalizados, com novas lideranças, com um novo tipo de organização.
Essa nova leva é cada vez mais incontrolável porque é o meio do bolsonarismo que foi tornado órfão pelo exílio do Bolsonaro e pela ducha fria dos militares, que durante quatro anos incentivaram e depois, na hora H, “não contem conosco porque é muito complicado, golpe não é assim, não é mais o caso de dar golpe”. Estão órfãos, mas como eles representam uma força social imponente, vão se reorganizar de outra maneira e vai aparecer algum líder.
O problema é que tem que ser um líder carismático, e por enquanto só tem dois disponíveis no mercado. Basta ter 100 mil pessoas esperando Bolsonaro no aeroporto e pronto, recomeçou a opereta.
Guerra civil
Os únicos lugares em que uma guerra civil realmente é possível de acontecer são os Estados Unidos e o Brasil.
Os Estados Unidos terão eleições antes do fim do mandato do Lula e o Partido Republicano virou uma facção. As guerras civis começam com a transformação dos grupos políticos partidários em facções. Melhor ainda se elas forem racializadas, etnicizadas e transformadas em facções religiosas.
Se começa lá em cima, o poder irradiador disso é uma internacional. Está se criando uma internacional de extrema-direita e, no Brasil, baseada em uma economia de pilhagem. No topo do poder, as organizações coercitivas armadas, de preferência fardadas, e a multiplicação de várias soberanias. É como se nós imaginássemos uma espécie de explosão com vários estilhaços de pequenas Venezuelas, onde quem dão as cartas são os militares. Já são os próprios milicianos. Eles estão em todos os tráficos: o diamante e a cocaína são com os militares. Isso é o fim, onde nós vamos terminar.
Sem diálogo
Essa realidade subjacente produz grupos sociais com os quais nós não conseguimos conversar mais. A nossa conversa progressista não diz nada para eles, porque já começamos tendo excluído eles da civilização: são atrasados, são manipuláveis, são broncos, são pobres, são analfabetos, são negros e tudo o que você possa imaginar, são obscurantistas, são contra a ciência, e por aí.
Você vai conversar com um coletivo em uma periferia no extremo sul [de São Paulo]. Esse coletivo, mais ou menos todo o mundo vestido igual, pensando igual, com os mesmos clichês “nós contra os boys”. Você começa a falar: “Nós, boys, sou branco, sou universitário, sou da USP, mas nós precisamos unir as nossas misérias e fazer uma frente única anticapitalista”. Aí os caras: “O que você está pensando da vida, meu caro? Você quer ensinar para a gente como se faz, como se sobrevive, como se enfrenta os caras aqui no pedaço? Vai te catar, vai procurar a tua gente, não enche o saco, nós é que vamos dar a lição para você”.
Diante disso, você vai falar o quê? Você volta para casa, baixa sua biblioteca e começa estudar as várias variantes de insurreição popular na história [risos] da Europa Ocidental nas últimas duas décadas e não encontra nada no seu repertório que possa atender, que possa dizer “o que eu vou falar para um pastor”.
Não falamos mais a mesma língua. Não sabemos como abordá-los. O Juliano Spyer, no livro O Povo de Deus, diz o seguinte: “Você, progressista de esquerda e marxista, é monoglota, você tem que aprender outras línguas, e uma das línguas é a dos evangélicos”.
A extrema-direita está conseguindo. Por quê? Porque eles dizem a verdade. Se você chega com um discurso progressista lá embaixo, todo o mundo acha que você ou é um idiota ou está querendo enganá-los. Agora, se você chega lá com o discurso bolsonarista, eles vão falar: “Olha, esse cara sabe o que está fazendo, talvez ele queira vantagem, mas ele sabe o que é isso. Aqui é lei do mais forte, do empreendedor, do homem”, e assim por diante. É isso que está acontecendo: o capitalismo é para poucos e para quem consegue se virar. Essa é a nossa vida diária.
“Esse cara está falando a verdade, em benefício próprio ou não. Ele não está tentando nos enganar. Pode ser que esteja tentando nos manipular”. Ele não está nem manipulando, está conseguindo mobilizar e engajar através desse grande acelerador que são as redes sociais.
Ataque aos Poderes
Um discurso que é acelerador, aglutina, organiza, mobiliza e põe gente na rua: esse era o sonho de consumo do pessoal de Junho de 2013 quando eles sambaram em cima do telhado do Congresso.
Não era depredar o Congresso. Para eles, não significa nada depredar o Congresso. Mas, imaginariamente, pensavam o mesmo do Congresso e da classe política que a extrema-direita pensa. O que a esquerda queria era: “Vamos transformar o Congresso no nosso Palácio de Inverno, vamos tomar de assalto”. Quando éramos de esquerda, há várias gerações, a nossa ideia era entrar em Brasília e destruir tudo. Aí não tem nada a ser preservado. O que é o Supremo a ser preservado? O Supremo é um bando de oligarcas, inclusive no sentido russo do termo, 11 que fazem o que bem entendem e se arvoraram o Poder Moderador, por isso que disputam com os militares.
O que é o nosso grande xerife, o herói democrático do momento, o senhor Xandão [Alexandre de Moraes, ministro do STF]? O Xandão era aquele careca que mandava bater na gente, que entrava a pontapé nas escolas sem mandato judicial e mandava desocupar. Esse é o democrata, que está defendendo a democracia. O discurso do Xandão muda de sinal em pouco tempo, e vocês serão a bola da vez depois de ele ter extirpado a ralé bolsonarista, que está atrapalhando, mas virá uma outra geração.
Refazer a direita
Nossa tarefa histórica neste momento (como se dizia nos velhos tempos) é refazer a direita. Nós temos que fazer uma direita democrática, que respeite a legalidade de um Estado republicano e que não se alinhe, de preferência, com a extrema-direita. Se não for possível, se eles não se moverem, nós seremos essa nova direita.
Para nós, é uma coisa abominável o que aconteceu no dia 8 de janeiro, mas era o sonho da esquerda desde a Comuna, passando pelo 1917 russo. Tem que compreender, mesmo que seja horroroso. Toda vez que o fascismo avança, a esquerda perde um pouco de energia. Quem disse isso foi o Walter Benjamin. O fascismo hoje tem o poder, tem a potência de fazer isso. Parece que nós ganhamos? Ganhamos coisa nenhuma, eles estão se reorganizando.
Fonte: Folha de SP (acesse aqui)
Autor: Paulo Arantes
Publicado em: 11/03/2023