“ENTENDER O QUE MOVE TANTA GENTE A IR ÀS RUAS É URGENTE. MAS NÃO NOS EXIME DE DIZER QUE ELAS ESTÃO SENDO ENGANADAS E INSTRUMENTALIZADAS.”

Matheus Pichonelli – TAB – 08/11/22

A persistência das manifestações golpistas e o fanatismo com que muitos bolsonaristas se expressam são recados de que não será suficiente ignorar ou ridicularizar o movimento. É preciso compreendê-lo e enfrentá-lo como um sintoma de que boa parte do país vai muito mal.

Matheus Pichonelli, em duas colunas no TAB UOL, propõe dois caminhos de abordagem do problema. O primeiro: essas pessoas estão sendo enganadas, e precisam saber disso. O segundo: há um substrato de grave delírio coletivo que precisa ser investigado.

Do primeiro ponto, ele lembra que não se pode perder de vista e deixar de anunciar aos quatro ventos o que realmente está acontecendo: “todos ali estão igualmente mobilizados por uma fraude: a ideia de que as eleições foram ‘roubadas’, que gente como Alexandre de Moraes entrou em campo para validar o gol de mão do PT e censurar quem for às redes comunicar a verdade. A única ‘verdade’ em que eles acreditam”.

A implantação do comunismo, a invasão de terras e residências, a miséria que nos fará comer cachorros, a imposição da homossexualidade a crianças, a perseguição aos cristãos… são mentiras deslavadas que se tornaram ameaça real na cabeça de milhões de brasileiros.

“Até a forma como atribuem a Jair Bolsonaro o papel de salvador e símbolo da família tradicional é uma fraude. É só ter um pouco de interesse para saber como o chefe de família se comportou desde o primeiro casamento (o atual é o terceiro). Dar a caneta moralizante do país a alguém que permitiu aos familiares comprarem 51 imóveis com dinheiro vivo é outro erro factual de quem, por razões justas ou não, pensa estar na rua lutando por um país melhor. Essas pessoas estão comprando gato por lebre e, pior, não sabem disso.”

Pesquisa “A cara da democracia”, divulgada em julho de 2022, chama a atenção para a quantidade de brasileiros que acredita em teorias da conspiração. Metade dos entrevistados, por exemplo, acredita que o coronavírus foi criado pelo governo chinês. E cerca de um terço aceita a tese de que há uma conspiração global da esquerda para tomar o poder – percentual que vai a 37% entre os mais escolarizados.

Não é fácil confrontar um fanatizado com informações e argumentos racionais. “Trabalhar com informação e ouvir groselhas sobre fraude eleitoral e perigo comunista de quem já não lê, não quer ler e tem raiva de quem lê notícias sérias é ver parte de uma vida dedicada à curiosidade e ao exercício de apuração ser arremessada ao lixo (…) Não tenho ideia de como começar essa conversa”.

Para piorar, muitos bolsonaristas são agressivos, pois o combustível da sua rede de mentiras, de mãos dadas com o medo, é o ódio. Outros tantos andam armados. “O mundo de fato está polarizado. Numa ponta está gente armada, na outra, gente morta. A sensação de impotência é brutal”.

Questões psiquiátricas

É tentador, ainda mais na era memeficada das redes sociais, recorrer ao simplismo de repetir que o Brasil precisa de uma “intervenção psiquiátrica”. Associar o bolsonarismo radical a problemas mentais não é cientificamente defensável. No entanto, esse fenômeno de delírio em massa não pode deixar de ser analisado em suas raízes mais profundas.

“Chamar a catarse coletiva de loucura é desprezar as muitas camadas de sofrimento real enfrentadas por quem de fato possui algum tipo de distúrbio, alteração mental e afastamento prolongado da capacidade de pensar, sentir e agir”.

“Chamá-los pelo nome exige percorrer outras rotas de interpretação do fenômeno que atravessam estados incontidos de perversidade, violência, desinformação, instrumentalização política e até do assédio religioso. Mas a coisa chegou a um ponto que, se não alcançou, espreita o estágio e os limites do delírio.”

“O Brasil que saiu das urnas, após dois anos de pandemia e confinamento, é um Brasil com a saúde mental dinamitada. Todos nós sentimos o baque.”

“Se existe um estágio divisório entre a euforia e a completa irracionalidade, é ali que parte do país se encontra. E dali não está conseguindo sair. Não, essas pessoas não estão bem.”

Pichonelli tenta apontar as razões e consequências dessa “crise existencial profunda”: “sujeitos impactados por uma nova tecnologia e novas formas de estar no mundo parecem clamar desesperados por um lugar que estava aqui e deixou de existir.

Quando o medo nos tira do território da razão, ele leva uma multidão às ruas, como numa certa Alemanha dos anos 30, para gritar e lutar em defesa não de um país, mas das obsessões de um líder igualmente inseguro, apavorado e com medo da derrota, da decadência e da finitude.

Todos ali, líderes e liderados, precisam de um inimigo para produzir coesão. Não tem como dar certo. Quer maior sinal de alienação da realidade do que usar crianças como escudo humano em protesto em defesa da… família?

O perigo de elaborar a frustração pessoal com armas é a guerra. É por isso que tentamos rir das notícias do absurdo enviadas do front e não conseguimos. Ou não aprendemos nada com o século 20?”

Fonte: TAB (acesse aqui)

Autor: Matheus Pichonelli

Publicado em: 08/11/2022