Dino: depoimentos incriminam militares

Ministro da Justiça comenta investigações dos atos golpistas. Fardados da ativa estão entre os envolvidos.

*

O ministro da Justiça, Flávio Dino, está convencido de que existe uma inteligência a comandar o movimento golpista que resultou na invasão às sedes dos Três Poderes. Em sua ótica, o país enfrentou, de 30 de outubro a 8 de janeiro, uma sequência de atos organizados para desacreditar o resultado das eleições, incitar um levante das Forças Armadas e impedir o governo Lula de assumir o mandato concedido pela maioria dos eleitores.

Ele lembra que os planos eram de alta periculosidade: um dos golpistas, preso em 24 de dezembro por planejar um atentado a bomba, estava em treinamento para atuar como um sniper, atirador de longa distância.

Em entrevista ao Correio Braziliense, Dino comenta as investigações em andamento. Em oitivas, policiais militares e federais apontam delitos cometidos por membros das Forças Armadas, inclusive da ativa.

Sabotagem no dia 8

Houve pessoas que sabotaram o planejamento que foi feito em 6 e 7 de janeiro. Nesses dias, à semelhança do que aconteceu para a posse, houve reuniões. E, para a posse, tudo que foi acordado foi feito, não tivemos um único incidente. O mesmo sistema que funcionou uma semana antes para 300 mil pessoas depois não dá conta de 5 mil? Não tem lógica, e portanto fica evidente que houve uma intencionalidade de sabotagem, sobretudo no policiamento ostensivo. A Polícia Militar estava em contingente ínfimo, despreparado, não equipado. Os bloqueios não funcionaram. Mas como, se funcionaram no dia 1º? Houve um engendramento que passou por civis, por agentes militares, e os nomes estão aparecendo.

Escalada golpista

De 30 de outubro a 8 janeiro, esse agrupamento só fez pensar em uma única coisa: como dar um golpe no Brasil. Havia inteligência nisso tudo, e começou com a tentativa de ganhar na marra a eleição no segundo turno — com as operações da Polícia Rodoviária Federal e da Polícia Federal. Continuou nos dias seguintes com os bloqueios das estradas e a tentativa de criar um pânico no país. Prosseguiu com aquela esdrúxula minuta de um decreto golpista, localizado lamentavelmente na casa do meu antecessor. Prosseguiu nos ataques de 12 de dezembro, que foram fabricados também. Partiram, iniciaram e terminaram no acampamento situado em frente ao Quartel-General do Exército. Mais adiante, o ataque à bomba no dia 24 de dezembro.

Houve um hiato, que foi exatamente a posse. A articulação institucional e a presença popular impediram que houvesse algum tipo de atentado. E lembrem que o cidadão que está preso pela participação no ataque à bomba estava fazendo treinamento de sniper para dar um tiro de longa distância. Tudo isso está documentado. Então, a essas alturas, ninguém de bom senso pode imaginar que o dia 8 de janeiro foi fruto de uma falha. Não! Foi fruto de um plano! Um plano que começa pouco antes da eleição, continua depois do resultado das urnas, se agudiza em dezembro — a meu ver, fruto do desespero — e que ecoa até 8 de janeiro.

Legalismo maior que golpismo

Pretendiam que o dia 8 funcionasse como uma espécie de gatilho. Imaginavam, no seu mundo paralelo, que haveria uma grande adesão popular e que as Forças Armadas iriam se levantar para restabelecer a ordem. E com isso conseguiriam essa virada de mesa que buscavam. São golpistas, terroristas, pessoas perigosas. A base social que alimentava essa gente, em muitos aspectos, continua. Latente, mas continua. O 8 de janeiro funcionou como um alerta para as pessoas que estavam no meio do caminho – inclusive nas corporações armadas do Estado. Ficou “over”. Muita gente que dizia assim “Ah, eu odeio o Lula” – é o direito delas, ninguém é obrigado a amar ninguém. O dia 8 criou um “mas”. “Eu odeio o Lula, mas…Eu não concordo com a destruição do Supremo, não concordo com baderna”. Esse “mas” se adensou. O legalismo é maior que o golpismo.

Prisões excessivas?

Executores foram presos em flagrante por crimes graves. Se tivessem ocorrido em dia de semana teriam resultado em mortes, tal o nível de agressividade que estava se verificando. É importante dizer isso com clareza porque hoje há discursos que tentam apresentar as prisões como excessos. Não! A ação do Estado tem que ser proporcional à gravidade da conduta. As pessoas que estavam no acampamento foram presas. Quem está em um acampamento que pede golpe de Estado já está cometendo crime. Quem diz isso? O Código Penal. Se você está em um acampamento com uma faixa “Militares, salvem o Brasil!”, “Deem o golpe!”, “Intervenção militar”, seja lá o que for, isso é incitação criminosa. É crime incitar a animosidade entre as Forças Armadas e instituições civis. As pessoas vão ser julgadas pelo Poder Judiciário, não é o governo que julga. Quem oferece a ação penal é o Ministério Público, que é independente. E quem julga é a Justiça, que é independente. Tudo o que a lei manda foi feito. Nas ações penais, elas têm direito à defesa. Muita gente foi solta nas audiências de custódia, e por fatores humanitários.

Envolvimento militar

Os chefes dessa empreitada criminosa estão sendo revelados e vão continuar a ser revelados nos próximos meses. Na semana passada, a Polícia Federal pediu autorização ao ministro Alexandre de Moraes para realizar diligências relativas a militares. Depoimentos de policiais militares e de policiais federais começaram a imputar crimes contra militares. Um policial federal alude a militares da ativa. A princípio a competência é da Justiça Militar. Temos muito cuidado com o chamado devido processo legal. Tudo é feito lastreado em provas ou indícios.

Decisão pela intervenção

O primeiro telefonema que eu dei foi ao presidente da República, meu chefe imediato. Abri o cardápio jurídico a ele. Eu disse: “Presidente, a Constituição prevê o estado de sítio, estado de defesa, intervenção federal, GLO…”. O presidente definiu o caminho da intervenção federal. Com uma hora e pouco, houve a reversão daquele fato de descontrole. E essa resposta rápida foi decisiva inclusive para desanimar um eventual efeito dominó que os golpistas esperavam que fosse ocorrer.

Extremismo nas redes

Essa é uma questão mundial, uma questão nodal das democracias contemporâneas. É imperativo que o Brasil, além de fazer ouvir a sua voz na cena internacional, faça o dever de casa. O que propusemos foi um texto moderado, adstrito a seis crimes, fazendo uma regulação bem leve em relação a essas condutas em geral nocivas na rede. A nossa proposta não se refere a fake news de um modo geral. Ela cria um conceito jurídico novo no Brasil, que é o chamado dever de cuidado das plataformas. Elas deixam de ser vistas como imunes à responsabilidade pelo que lá trafega, mas não de um modo geral e sim em relação a seis crimes, delimitados na lei do terrorismo e no capítulo do Código Penal destinado aos crimes contra o Estado Democrático de Direito. Vamos supor: um shopping pode alugar um estande para ensinar uma pessoa a fabricar bomba? Não. E se o fizer? Quem é responsável? Tecnicamente, é quem está ensinando, e o shopping, que está alugando um espaço. A internet ganhou uma centralidade tal que o conceito da neutralidade ou da imunidade não pode mais prevalecer. Por quê? Porque é do modelo de negócios dessas empresas maximizar lucros com o vale-tudo. Os antagonismos, os preconceitos, os ódios são funcionais a esse modelo de negócios. Ou seja, pessoas ganham dinheiro com sangue e com vidas. Aí entra a lei, para conter os apetites insanos de quem quer ganhar dinheiro à custa de vidas humanas. E me refiro a vidas não só pela ocorrência de homicídios como pelas vidas dizimadas por agressões morais.

Liberdade de expressão

Não creio que o nosso projeto seja uma ameaça à liberdade de expressão. Pelo contrário, ele defende a liberdade de expressão. Na medida em que você combate abusos, você protege o direito. No momento em que você fecha o caminho para dizer: “Olha, a liberdade expressão tem fronteira. Você não pode propor matar as pessoas, não pode propor que segmentos sociais sejam discriminados”, você está dizendo o que é a liberdade de expressão legítima. Você está protegendo-a. É como a liberdade religiosa. Por que a laicidade é a verdadeira proteção à liberdade religiosa? Porque ela diz que todos podem ter as suas religiões. Então a liberdade é sempre regulada. Dentro do nosso lar, no âmbito doméstico, familiar, todos temos liberdade regulada. Os cônjuges, os filhos, todos têm liberdade regulada pelo Código Civil, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, etc. Por que a internet vai ficar sem regulação alguma, se até os nossos lares são regulados? Estes que dizem defender a liberdade de expressão são farsantes porque, na verdade, estão protegendo os seus lucros.

Explosão dos CACs

Formou-se um consenso nacional das pessoas sérias de que não podemos conviver com esse caminho fraudulento, em que repentinamente brotaram CACs no Brasil. Os CACs de verdade sabem que isso está errado. Como, de repente, surgiram tantos colecionadores de armas, tantos atiradores esportivos, tantos caçadores, para caçar o quê, afinal, se na imensa maioria do nosso território a caça é até ilegal? Os CACs viraram um escudo para pessoas que queriam ter porte de arma e não conseguiam, por ausência de comprovação da efetiva necessidade, por exemplo. E repentinamente acordaram e se descobriram CACs. Nosso problema não é com o atirador esportivo, não é com o colecionador de armas. Nosso problema é com os fraudadores. Como esses que vão dar tiro em escola, no trânsito, por motivo de uma partida de sinuca, que vão matar as esposas, os filhos ou que vão vender armas para o PCC e para as quadrilhas no Brasil. Por que estamos fazendo o recadastramento? Porque arma de uso restrito tem que ser mostrada fisicamente. Como, de repente, uma pessoa acorda e resolve comprar 30 fuzis? Um já é esquisito. Convenhamos, a imensa maioria da população não tem dinheiro para comprar uma pistola, quiçá um fuzil. E, de repente, comprou um fuzil? Comprou para quê? E comprou seis mil cartuchos? Para quê, se está com a conta de luz em casa atrasada? [O tráfico de armas] virou meio de vida, para muita gente. Quadrilhas já foram desbaratadas vendendo registros falsos, vendendo armas.

Fonte: Correio Braziliense (acesse aqui)

Autor: Carlos Alexandre de Souza, Ana Dubeux e Denise Rothenburg

Publicado em: 26/02/2023