Mentor do 8 de janeiro, ele conspirou com militares e articulou-se com extremistas. Outros generais serão investigados.
Os ataques às sedes dos três Poderes resultaram em 1.398 presos, dos quais a Procuradoria-Geral da República (PGR) denunciou 835, sendo 645 classificados como “incitadores”, 189 como “executores” e 1 é um agente público citado por omissão. Mas nenhum militar foi alvo dos inquéritos.
Em breve as apurações tomarão um novo rumo: será averiguada a participação dos generais próximos a Jair Bolsonaro. Entre eles, destaca-se aquele que tinha o controle sobre o aparato de segurança e informações do governo e era o responsável por órgãos que deveriam ter se antecipado aos acontecimentos e agido diante dos riscos de ataque: o general Augusto Heleno.
“Conivência abissal”
O general deixou no final de dezembro a chefia do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), que controlava a Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Será investigado porque desmontou o GSI para que o órgão ficasse totalmente inerte no dia 8. Tirou militares de posições importantes do órgão e da Abin para deixá-los sem reação. “Heleno foi de uma conivência abissal”, diz um ministro do Supremo. O militar só deixou gente da confiança dele nos principais postos, e essa ação foi o que mais contribuiu para a falta de reação do governo no dia da tentativa de golpe.
Um desses homens de confiança de Heleno, o coronel José Placídio Matias dos Santos participou dos eventos e pediu nas redes sociais que as Forças Armadas “entrassem no jogo, desta vez do lado certo”. Ainda conclamou o então comandante do Exército, general Júlio César de Arruda, a “cumprir o seu dever de não se submeter às ordens do maior ladrão da história da humanidade”. O oficial depois apagou as mensagens, mas o recado foi dado.
O golpismo era comportamento corriqueiro entre funcionários do GSI. O primeiro-sargento da Marinha Ronaldo Ribeiro Travassos não apenas participava dos atos em frente a quartéis como, no final de novembro, fez circular mensagens em áudio e vídeo falando em “guerra civil” e sugerindo “tiro na cabeça” de quem votou em Lula. Questionado por seu vínculo institucional, respondeu: “o general sabe que eu tô aqui e eu falei que tem bastante gente, tem gente da segurança e tudo. Ó, meu irmão, é tudo ou nada, não tem conversinha”.
A conspiração antidemocrática nos quadros do GSI sempre esteve no radar do governo eleito. Quando o órgão tentou fazer parte do esquema de segurança no período de transição, a equipe que cuidava da proteção de Lula achou mais prudente dispensar o serviço.
Roubo de armas
No dia da invasão, o advogado Wadih Damous, antigo quadro do PT, denunciou em vídeo o roubo de armas e munições de uma sala do GSI no Planalto. Segundo ele, os invasores tinham informação do que estava guardado no local. Também há relatos de que militares do GSI tentaram facilitar a saída de depredadores pelo térreo do prédio, sem serem presos.
“A certeza é que houve leniência do GSI, antes, durante e depois. Às 6h da manhã o acesso [do Planalto] já estava liberado”, disse uma pessoa que acompanhou as reuniões de segurança após o ato terrorista. “Era a primeira semana de governo, a maioria que estava era a turma antiga”, acrescentou, sobre a equipe que compunha o GSI.
Abin na Casa Civil
Após os atentados de 8 de janeiro, Lula disse que não foi avisado pelos serviços de inteligência sobre o risco iminente. Mas um relatório sigiloso enviado pelo GSI ao Congresso aponta que o governo foi informado. O alerta teria sido produzido pela Abin e compartilhado com órgãos federais. Na época, o responsável pelo GSI era o general da reserva Gonçalves Dias, indicado por Lula. Por isso os petistas passaram a vê-lo com desconfiança. Lula decidiu esvaziar o GSI, deslocando a Abin para a pasta da Casa Civil, sob o comando de Rui Costa. E, só em janeiro, pelo menos 13 militares do órgão foram exonerados.
Reuniões com as Forças e a minuta de golpe
Personalidades do mundo jurídico confirmam Augusto Heleno como um dos principais, se não o principal, articulador da tentativa de golpe de Estado que começou a ser conspirada meses antes das invasões. Fontes ligadas à Segurança Pública relatam que Heleno teria usado o aparato técnico do GSI e a influência nas Forças Armadas para tentar evitar a posse de Lula.
Um almirante influente no governo Bolsonaro e próximo de Augusto Heleno teria enfatizado várias vezes a seus subordinados e em reuniões que o novo presidente não governaria.
“O golpe não se consumou porque não conseguiram consolidar a maioria no Exército”, disse outra fonte. Para consolidar essa “maioria”, Heleno teria intermediado várias reuniões. Em uma ocasião específica, com a presença o general Walter Braga Netto e representantes do Exército, da Marinha e Aeronáutica, todos concordaram com a articulação de um golpe de Estado, menos o membro da Aeronáutica. Um dos resultados da reunião foi a minuta golpista encontrada na casa do ex-ministro da Justiça, Anderson Torres. “Não foi uma brincadeira, estivemos a um passo do golpe”, frisou um dos informantes.
Conselheiro de radicais e articulador de atentados
Desde que assumiu o núcleo mais sensível no Planalto, Augusto Heleno aumentou enormemente o papel do GSI. O órgão passou a controlar a área de segurança, monitorando todas as informações sobre grupos radicais. Assim, Heleno tornou-se uma referência para os extremistas. A ativista Sara Winter revelou que foi orientada diretamente por ele, no Palácio do Planalto, na época em que ela articulava o “Acampamento dos 300”. “Ele pediu para deixar de bater na imprensa e no [Rodrigo] Maia (então presidente da Câmara) e redirecionar todos os esforços contra o STF”, disse Sara.
No dia 13 de junho de 2020, o grupo marchou em direção ao STF e atacou a sua sede com fogos de artifício, numa “advertência”.
O papel do general entre radicais aumentou após a eleição de Lula. Um servidor da Polícia Federal lotado na Presidência da República acusou militares do GSI, sob comando de Heleno, de orquestrar os atentados extremistas na noite de 12 de dezembro, horas depois do presidente eleito ser diplomado.
Depois que Bolsonaro deixou o país, um dos posts mais compartilhados nas redes bolsonaristas mostrava um link do Diário Oficial supostamente transferindo a Presidência para Heleno. Seria uma “estratégia” do presidente, refugiado nos Estados Unidos. “Bolsonaro passou todo o poder para o GSI” e “o general Heleno é o presidente da República. Ele é o melhor estrategista do País, talvez do mundo”, diziam as postagens.
Catalisador do golpe
Essa busca de “mensagens ocultas” pode até ter um fundo de verdade, aponta um jurista. Uma resolução publicada no dia 23 de dezembro pelo próprio Augusto Heleno estabeleceu grupos técnicos de trabalho em diversos ministérios sob a coordenação do GSI. “Tudo parece inocente”, mas as más intenções se revelam mais tarde e há um teor “perigoso”, pondera o especialista. Normas como essa poderiam ser empregadas como catalisadores da ala militar hostil ao resultado das urnas. Funcionariam em conjunto com outros documentos golpistas que circularam em Brasília após as eleições, um fato reconhecido pelo presidente do PL, Valdemar Costa Neto.
“Dois lexotan por dia”
Depois de 30 de outubro, circularam áudios no WhatsApp com a voz de Augusto Heleno em que o general dizia com tom sereno, mas assertivo, que a eleição havia sido fraudada e que ele não podia adiantar medidas que estavam em discussão, pois “há ainda muita coisa em jogo”. O GSI desmentiu e considerou o áudio como “fake de péssima qualidade”. O jornal O Estado de S.Paulo o submeteu a dois peritos, que disseram não ser possível atribuir a voz ao general.
Em 2020, Heleno falou em “consequências graves” caso Bolsonaro fosse obrigado a entregar o celular no inquérito que apurava se o então presidente havia interferido na PF.
Uma gravação vazada após evento da Abin, em 14 de dezembro de 2021, reproduz o general criticando as atitudes de “dois ou três” ministros do STF. Nesse áudio, ele disse que um dos Poderes está tentando “esticar a corda até ela arrebentar”. “Tenho que tomar dois lexotan na veia por dia para não levar Bolsonaro a tomar uma atitude mais drástica em relação ao STF”, afirmou na ocasião.
Em julho de 2022, durante uma audiência da Comissão de Fiscalização e Controle da Câmara, Heleno defendeu o sargento da Marinha Ronaldo Ribeiro Travassos, alocado no GSI, que gravou um vídeo defendendo um golpe militar. Heleno alegou que se tratava da ação de um cidadão brasileiro que tinha “o direito de se pronunciar”.
Na audiência da Comissão de Fiscalização e Controle do Senado no dia 30 de novembro, em que vários bolsonaristas questionaram o resultado das urnas, o general conclamou: “Vamos lá discutir os temas que nos afligem. Coragem, força e fé. O Brasil acima de tudo”.
Oráculo
Para Leonardo Nascimento, do Laboratório de Humanidades Digitais da UFBA, as manifestações do general Heleno ao longo do tempo contribuíram para galvanizar os grupos bolsonaristas que participaram do 8 de janeiro. Segundo o pesquisador, as declarações e postagens do ex-ministro do GSI foram fundamentais também para que se criasse em torno dele uma certa “mística”. Nascimento vem monitorando grupos bolsonaristas em redes sociais nos últimos anos e acompanha de perto os efeitos das manifestações de Bolsonaro sobre seus seguidores. O ex-presidente seria o “grande oráculo de desinformação” desses grupos, nos quais tudo o que fala tem ressonância direta. Na sua ausência, ganharam mais importância as declarações de “sub-oráculos”, caso de Heleno. O próprio general teria se colocado nesse papel. “Heleno sempre foi o que mais deu declarações no sentido da ruptura institucional. Foi sempre o ministro que cumpria esse papel de verbalizar essa possibilidade, essa intenção.”
Depois do 8 de janeiro, Heleno sumiu das redes sociais, onde antes era bastante ativo – seus últimos tuítes são do dia 7 de janeiro.
Golpista na ditadura
O historiador e cientista político Francisco Carlos Teixeira, da UFRJ, lembra o “DNA golpista” de Heleno, que na década de 1970, ainda capitão, atuou como ajudante de ordens do então ministro do Exército Sylvio Frota, que tentou articular um golpe contra o presidente Ernesto Geisel.
“Ele já naquela época estava conspirando e fez parte daquela tentativa fracassada de ‘golpe dentro do golpe’, perpetrado pela chamada linha dura dos militares”, diz o professor. “Foi muito grave, não só pela tentativa de ruptura, mas porque foi contra um general presidente, contra um superior hierárquico”, destaca.
Posteriormente o ex-ministro foi favorecido pelo governo do PT, que o nomeou para o Haiti. “Isso contribuiu para essa mítica de que eles estiveram em combate, de que são guerreiros. Mas não se lembra que lutaram contra uma população faminta. E esses militares voltam ao Brasil se dizendo aptos a administrar o Estado”, diz. “Vimos militares lotados no GSI participando dos acampamentos antidemocráticos em frente a quartéis. Heleno não sabia? Ou foi ele que incentivou ou mesmo deu a ordem? Porque aí a participação dele muda de patamar. Passa a ser também por ação, e não só por omissão.”
Braga Netto e Ramos
Além de Augusto Heleno, o STF decidiu investigar outros dois generais de Bolsonaro que foram decisivos para os atos de 8 de janeiro: Braga Netto e Luiz Eduardo Ramos. Junto com Heleno, os dois foram autores intelectuais do golpe, supõe-se. Braga Netto é visto como tendo um papel-chave. Afinal, ele tinha ascendência com as tropas e era o candidato a vice de Bolsonaro.
Foi ministro da Casa Civil de fevereiro de 2020 até março de 2021, quando o ex-presidente demitiu o então ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, e os comandantes das três Forças: Edson Leal Pujol (Exército), Ilques Barbosa (Marinha) e Antônio Carlos Bermudez (Aeronáutica). Esse episódio representou a maior crise militar desde a demissão do ministro do Exército pelo presidente Ernesto Geisel, em 1977. Na época, Frota articulava um golpe contra Geisel, e tinha como ajudante de ordens exatamente Augusto Heleno. Braga Netto então assumiu o Ministério da Defesa e só se afastou em abril de 2022. Após a derrota eleitoral, Braga Netto tornou-se o principal articulador do chamado “QG do Golpe”, uma sede do comitê da campanha presidencial que virou ponto de promoção e apoio dos protestos que pediam intervenção militar.
O outro general que está severamente envolvido com o golpe é Luiz Eduardo Ramos, ex-ministro da Secretaria de Governo e da Casa Civil, que chegou inclusive a organizar a “live”, em julho de 2021, em que Bolsonaro iria apresentar evidências de que houve fraude das eleições.
Na ocasião, o ex-presidente reconheceu que não tinha provas. Um técnico de informática que participou da transmissão, Marcelo Abrieli, declarou em depoimento à PF que antes dessa participação havia sido chamado ao Planalto por Ramos e que conhecia o general desde 2018, quando este ocupava a chefia do Comando Militar do Sudeste.
Ramos foi também titular da Secretaria-Geral da Presidência até dezembro passado, e era amigo próximo de Bolsonaro desde os tempos da Academia das Agulhas Negras, nos anos 1970. Foi preterido para o posto de vice na chapa da reeleição, mas permaneceu atuando no círculo íntimo do presidente.
Os três generais, segundo ministros do STF, podem ser considerados os principais articulares militares da tentativa de golpe de Bolsonaro.
Fonte: IstoÉ (acesse aqui)
Autor: Germano Oliveira e Marcos Strecker
Publicado em: 17/02/2023