“ALGO SE ROMPEU NA REPÚBLICA TUPINIQUIM, E POLÍTICA HOJE TEM A VER COM VIOLÊNCIA, COM POLÍCIA, COM MILÍCIA, COM MENINOS ARMADOS.”

Gabriel Feltran – Folha de S. Paulo – 16/03/22

Professor titular da Sciences Po (Instituto de Estudos Políticos de Paris) e autor do livro Irmãos: uma História do PCC, Gabriel Feltran escreve sobre as facções armadas que hoje dominam variados territórios do país, conquistaram poder político, se infiltram na Justiça, não se submetem às elites tradicionais e implodem qualquer perspectiva de pacificação institucional, no que ele chama de “contrarrevolução dos jagunços”.

Empreendedores do crime

Os empreendedores — da cocaína, de empresas legais, de fundos públicos, tanto faz — sabem que a vida fica melhor com dinheiro. Dá inclusive para comprar armas e se organizar. Uns ladrões fundaram o Sindicato do Crime, outros, o PCC, outros, a ‘Ndrangheta e outros, os cartéis. Com dinheiro e armas na mão, policiais também se organizaram em sindicatos, carreiras políticas e milícias. Não estamos vendo que grupos armados controlam territórios cada vez maiores no Brasil? Que facções criminais e milícias decidem quem vive ou morre por ali?

Poder político das facções

Nada mais político que controlar armas e mercados, seja nas periferias ou na Amazônia. Há poder político emanando de facções, milícias e polícias corrompidas. Esse poder tem hoje muito dinheiro. Territórios controlados diretamente por armas — a Amazônia inclusive — têm ofertado enorme acumulação e o que ela produz já desafia os governos locais.

Os ideais de mundo de milicianos e faccionados não são democráticos nem republicanos. Mas sabemos, não é de hoje, que policiais estudam direito e que ladrões têm advogados cada vez melhores. Esses homens todos, uns vindo de baixo e outros de cima, falam agora de grandes negócios e da grande política. Suas diferentes sociedades secretas, criminais, partidárias ou ecumênicas estão no jogo político central. Seu poder não me parece estar hoje sob o controle do Executivo.

Revolução dos jagunços

Estamos diante de uma reestruturação das estruturas de poder? Ou sempre foi assim? Bom, o corporativismo policial-jurídico-empresarial corrompido é, desde sempre, contra a República e os direitos humanos. Nesse corporativismo de gênero, classe e raça, não há uma comunidade de cidadãos a construir. Há uma guerra dos cidadãos (eles mesmos) contra esses pretos todos (e os que os representam). Que fiquem em seus lugares, não nos perturbem.

O problema é que esses pretos e os jagunços já não aceitam esses termos para a guerra. Rompeu-se a linha de poder que emanava das elites econômicas tradicionais e controlava as polícias, que por sua vez controlavam o justiceiro, que então controlava os pretos mais revoltados e os ladrões.

Todos eles se organizaram com dinheiro e armas suficientes autonomamente. Os antes perfeitamente controlados pela violência de capangas das elites estabelecidas, hoje são capazes de produzir revoltas simultâneas em 15 cidades ao mesmo tempo, em 27 estados do país. Os jagunços que os combatem são, hoje, também vereadores, deputados estaduais, senadores e governadores de extrema direita. São empresários da segurança privada. Controlam ainda as armas do Estado.

Papel do Estado

O que parece novo é que o centro do poder político tenha se deslocado para a revisão estrutural do papel do Estado. Agora, a violência é um problema central na política. A área da Segurança é a área da administração estatal da violência, onde o jogo político se joga mais pesadamente hoje.

Perdendo o monopólio da força, o Estado garantidor de direitos some. Mas tentar usar a força estatal realmente existente hoje para recuperá-lo é quase tão temerário quanto.

Projeto totalitário

Essas forças, armadas, foram Presidência da República ontem, irmanadas em um projeto totalitário. Infelizmente, o que se anunciava já havia tempos parece estar se consolidando: a extrema direita totalitária é hoje mais forte que o bolsonarismo e se articulará a ele apenas e tão somente se houver interesse eleitoral.

Paulo Arantes faz um paralelo entre o que está acontecendo na Amazônia e o que acontece nas quebradas pelo Brasil afora, a guerra às drogas como paradigma. O filósofo falava de política e começa a falar de violência, porque a política se rebaixou à violência.

Algo se rompeu na República tupiniquim, e política hoje tem a ver com violência, com polícia, com milícia, com meninos armados.

Fonte: Folha de SP (acesse aqui)

Autor: Gabriel Feltran

Publicado em: 16/03/2023